Raízes da violência
extrema no Brasil: o que leva jovens a matar sem motivo aparente?
por Thiago
Guimarães - Da BBC Brasil em São Paulo
Adolescentes
recapturados após fuga de unidade de internação no Distrito Federal em 2015;
estudo analisou formação de jovens violentos
Dois
grupos de jovens de idade semelhante, todos homens, pobres e criados na mesma
região. Um grupo vira matador e o outro, trabalhador. Por quê?
O
sociólogo Marcos Rolim procurou essa resposta ao investigar a violência
extrema, aquela que mata ou fere mesmo quando não há provocação nem reação da
vítima. Modalidade que, acredita ele, está em alta no Brasil.
Em
experimento inédito no país, ele entrevistou um grupo de jovens violentos de 16
a 20 anos que cumpriam pena na Fase (Fundação de Atendimento Socioeducativo) do
Rio Grande do Sul. Ao final, pediu que indicassem um colega de infância sem
ligação com o crime e foi atrás dessas histórias.
Rolim
esperava que prevalecessem, no grupo dos matadores, relatos de violência
familiar e uso de drogas, mas outro fator se destacou: a evasão escolar (quando
o aluno deixa de frequentar a escola). E, aliado a isso, a aproximação com
grupos armados que "treinam" esses jovens a serem violentos.
Entre os
que cumpriam pena, todos, sem exceção, tinham largado a escola entre 11 e 12
anos. E citavam motivos banais: são "burros" e não conseguem
aprender, a escola é "chata", o sapato furado era motivo de chacota.
Os colegas de infância continuavam estudando.
Ao
comparar esses e outros casos (111 ao todo), incluindo dois grupos de presos
jovens do Presídio Central de Porto Alegre, uns condenados por homicídio e
outros por receptação, e alunos de uma escola de periferia sem histórico
criminal, concluiu que o chamado "treinamento violento" respondeu por
54% da disposição para a violência extrema.
Em outras
palavras, isso significa que sem a experiência do "treinamento
violento" - aquela que ensina a manusear armas, bater antes de apanhar e
exalta atos de violência - a disposição para esses crimes extremos cairia para
menos da metade nos casos analisados.
As
conclusões de Rolim, que foi vereador em Santa Maria (1983-1988), deputado
estadual (1991-1999) e deputado federal pelo PT gaúcho (1999-2003) e hoje não
tem filiação partidária, estão no livro recém-lançado A Formação de Jovens
Violentos - Estudo sobre a Etiologia da Violência Extrema (editora Appris).
Direito
de imagem Ramon Moser/Reprodução Image caption Tese de doutorado em Sociologia
de Marcos Rolim, publicada em livro, investigou a formação de jovens violentos
no Brasil
"Muitos
meninos que se afastam da escola são, de fato, recrutados pelo tráfico de
drogas e são socializados de forma perversa. E isso provavelmente deverá se
repetir se a pesquisa for reproduzida em outros locais, pois a diferença
estatística foi muito forte", diz Rolim à BBC Brasil.
A conclusão
prática, segundo o sociólogo, é que a prevenção da criminalidade deve levar em
conta a redução da evasão escolar, aspecto que costuma ser negligenciado no
Brasil quando o assunto é segurança pública.
Considerados
os índices de evasão escolar, o cenário no Brasil seria, de fato, favorável à
violência extrema.
Em 2013,
por exemplo, uma pesquisa do Pnud (Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento) mostrou que um a cada quatro alunos que inicia o ensino
fundamental no país abandona a escola antes de completar a última série.
O Brasil
figurava no estudo com a terceira maior taxa de abandono escolar entre os 100
países de maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), atrás apenas da Bósnia
e Herzegovina e do arquipélago de São Cristóvão e Névis.
Razões da evasão
E por que
as escolas não conseguem manter esses jovens na escola?
Embora o
assunto não tenha sido foco da pesquisa, Rolim arrisca algumas possíveis
explicações, a partir do contato com colegas que desenvolvem pesquisas em
instituições de ensino.
A
primeira, diz, é o despreparo de professores para lidar com alunos mais
vulneráveis e problemáticos.
"O
jovem de área de exclusão, que nunca abriu um livro e tem pai analfabeto, tem
toda uma diferença de preparação, e grande parte dos professores não está
preparada para lidar com ele", afirma.
Direito
de imagem Karine Viana/Palacio Piratini Image caption Fase (Fundação de
Atendimento Socioeducativo) do Rio Grande do Sul; internos abandonam escola
cedo, aponta pesquisa
Rolim
cita como exemplo um caso recente registrado em Porto Alegre.
"A
pesquisadora presenciou uma cena de indisciplina de um aluno de 10 anos em uma
turma pequena; a professora conhecia todos. Ela disse ao menino: 'Tu vai ser
bandido como seu pai'. Esse tipo de reação é inaceitável", conta.
Outra
possível causa, segundo Rolim, está na falta de conexão das escolas com as
comunidades em regiões violentas.
"Pelo
medo do crime, a escola deixou de se relacionar com as comunidades nas
periferias. Transformaram-se em bunkers com grades, cadeados, polícia na
frente. Não prestam serviços, não abrem aos finais de semana, pais e parentes
não a frequentam."
O
terceiro problema seria a própria educação oferecida na escolas públicas.
"Basicamente,
a mesma de 50 anos atrás", afirma o sociólogo.
"Hoje
é impossível lidar com crianças conectadas, mesmo as mais pobres, do mesmo
jeito. A escola se tornou espaço de pouco interesse e atração para o jovem das
periferias", acrescenta.
Violência futura
Em 2015,
último dado disponível, o Brasil registrou 170 assassinatos por dia - foram 58
mil homicídios naquele ano, número mais alto do que os de países em guerra. A
taxa daquele ano, de 29 casos por 100 mil habitantes, insiste em não baixar.
Na visão
de Rolim, o Brasil está "contratando violência futura" em escolas,
prisões e nas próprias instituições policiais.
Nas
prisões, isso se dá, segundo ele, pela reclusão por crimes patrimoniais.
Dados do
governo mostravam que, ao final de 2014, 66% da população carcerária brasileira
estava atrás das grades por crimes de drogas, roubos ou furtos - casos de
homicídios eram apenas 10%. Jovens negros e de baixa escolaridade são maioria.
"Temos
um perfil de encarceramento que não pega autores de crimes mais graves, e
pegamos um monte de jovens pobres na periferia, pequenos traficantes e
usuários, e vamos recrutando essas pessoas para as facções que atuam nos
presídios", diz Rolim, para quem o Estado brasileiro é o "principal
recrutador de mão de obra para as facções criminosas".
Direito
de imagem Agência Brasil Image caption Rebelião em presídio no Rio Grande do
Norte; para pesquisador, prisões de jovens pobres da periferia flagrados com
drogas e armas não surtem efeito positivo na segurança pública
E os
homicídios continuam em alta - estudo recente do Fórum Brasileiro de Segurança
Publica mostrou, por exemplo, que um em cada três brasileiros diz ter parente
ou amigo vítima de assassinato - porque falta investigação e foco dos governos
nesse problema, opina o pesquisador.
"A
redução dos homicídios não é a prioridade número 1 em nenhum lugar do Brasil.
Como grande parte das vítimas é pobre, não há pressão social para investigação.
E você lança uma mensagem de que o crime compensa", afirma Rolim. Estudos
costumam apontar que menos de 10% dos homicídios no Brasil resultam em
condenação.
O
investimento, avalia o especialista, deveria ser reforçado na repressão a
homicídios e a crimes sexuais.
"E
se for para continuar a política de repressão ao tráfico, temos que ir atrás de
financiadores, rotas e usar muito mais inteligência do que em prisões em
flagrante", argumenta.
Iniciativas de resultado
No meio
do que classifica como "desgraça geral" das políticas de segurança no
Brasil, Rolim destaca iniciativas voltadas a jovens que mostraram bons
resultados na prevenção da violência.
O POD
(Programa de Oportunidades e Direitos) RS Socioeducativo, criado em 2009 no Rio
Grande do Sul, atende jovens infratores de 12 a 21 anos que deixam o sistema de
internação.
Cada
jovem passa a receber, por um ano, uma bolsa de meio salário mínimo (R$
468,50), vale-transporte e alimentação, desde que frequente cursos de formação
em áreas como informática, mecânica e manutenção predial.
Segundo o
governo gaúcho, a cada dez jovens atendidos pelo programa, apenas três
reincidem no crime.
No
entanto, Rolim acredita que iniciativas semelhantes ainda sejam pouco
divulgadas.
"A
população gaúcha, por exemplo, pouco sabe da existência desse programa, porque
gestores ficam provavelmente com medo de divulgar e serem criticados por
'estarem dando dinheiro a bandidos'", diz.
"Essa
ideologização do tema da segurança pública é outro lado tenebroso dessa
história; você acaba perdendo a capacidade de execução de políticas no
setor", acrescenta.
A cidade
de Canoas, na Grande Porto Alegre, criou o programa Cada Jovem Conta, que
procura identificar jovens de escolas públicas com comportamento de risco para
ações de prevenção à violência.
O jovem
passa ser acompanhado por uma equipe de diferentes secretarias, como saúde,
educação e assistência social, para que frequente atividades esportivas e
culturais, entre outras.
A
prefeitura de Canoas afirma que mais de 60% dos jovens atendidos melhoraram o
desempenho escolar ou voltaram à escola, e suas famílias passaram a frequentar
mais os serviços públicos locais.
Neste
mês, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou um projeto do
senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG) que altera o Estatuto da Criança e do
Adolescente para elevar de três para oito anos o tempo máximo de internação
para jovens infratores.
A medida,
que ainda deverá ter mais uma votação na comissão antes de ir à Câmara, valeria
para atos infracionais análogos a crimes hediondos - como estupro e homicídio -
cometidos com uso de violência ou grave ameaça.
Rolim diz
concordar com o aumento do tempo de internação para um "perfil restrito de
jovens" reincidentes, mas criticou a associação com crimes hediondos, que
no Brasil incluem o tráfico de drogas.
"Isso
colocaria a maioria dos jovens sob a possibilidade de (cumprir) oito anos de
pena. Hoje se um jovem der um cigarro de maconha a outro, for flagrado e o ato
for equiparado a tráfico, é crime hediondo. Elevar o tempo de internação não é
problema, mas estabelecer isso para crimes hediondos é uma impropriedade
absoluta", conclui.Fonte: http://www.bbc.com/28/0517
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