O Estado-nação como patologia, por Vladimir Safatle
Muito já foi dito a respeito da
decisão inglesa de sair da União Europeia. Ela é certamente um dos fatos mais
importantes deste curto século por aquilo que explicita.
A União Europeia nasceu com a
promessa de ser o início de uma era pós-nacional, na qual os Estados-nação se
submeteriam paulatinamente a uma engenharia institucional capaz de garantir a
existência de sujeitos políticos pós-nacionais.
Aos poucos, atribuições dos
parlamentos nacionais passaram ao Parlamento Europeu, a criação de uma moeda
única levou a um banco central transnacional, as universidades criaram sistemas
de intercâmbio contínuo tendo em vista a formação de cidadãos europeus.
Nesse sentido, não se tratava
apenas de um espaço de livre comércio, mas da tentativa de criação de um espaço
político que deixaria para trás as estruturas dos Estados nacionais. Diferente
da Organização das Nações Unidas, que sempre foi algo mais próximo a um fórum
de debates, a União Europeia representou, pela primeira vez, um processo
efetivo de transferência de poder.
No entanto, mais de 20 anos
depois de sua instauração, a ira de parcelas expressivas de populações do velho
continente contra a União Europeia é visível. A decisão inglesa, por mais
suicida que seja do ponto de vista econômico e político (com a saída iminente
da Escócia do Reino Unido), é apenas a ponta do iceberg. A razão de tal ira
talvez esteja involuntariamente bem expressa na representação visual de sua
maior invenção, a saber, o euro. Há uma certa ironia em perceber como as notas
de euro não representam seres vivos (personagens históricos, animais, flora),
mas objetos mortos, como pontes, viadutos e outras construções de
infraestrutura. A ideia era louvar a circulação. Para ser mais preciso, a
circulação de riquezas, de produção, de capital. Mas, de forma sintomática,
nestas representações não há pessoas.
De fato, durante todos estes anos
a União Europeia foi uma engenharia institucional que só esteve de acordo em
dois pontos: organizar políticas massivas de salvamento do sistema financeiro
combalido desde a crise de 2008 e estabelecer políticas comuns de limitação de
circulação de imigrantes. Os projetos iniciais de criação de uma Europa social,
com estruturas transnacionais de garantias trabalhistas e defesa social,
naufragaram rapidamente. No caso da Grécia, por exemplo, a União Europeia
demonstrou toda sua irracionalidade ao impor medidas de austeridade durante
anos com resultados catastróficos, decididas por tecnocratas sem rosto e sem
disposição alguma para corrigir seus equívocos.
No entanto, o voto britânico foi
um dos mais impressionantes passos na direção errada da história recente. Ele
foi animado por dois fatores: a crença de que o fortalecimento do Estado-nação
serviria de contrapeso a estas políticas que levaram à pauperização do
continente e o medo diariamente alimentado pelo próprio governo e por setores
da imprensa local contra o além-mar (imigrantes, refugiados e estrangeiros).
O primeiro fator é apenas a
tentativa de ressuscitar um arcaísmo. O Estado-nação não existe mais e melhor
seria que ele fosse desmantelado de vez. Ele é apenas um zumbi que se alimenta
de algumas das piores patologias sociais de nossa época, como a paranoia
identitária, a ilusão das fronteiras, a paixão pelo isolamento.
O Estado-nação não decide mais
nada, mesmo quando ainda tem o controle de sua moeda, como no caso inglês.
Apenas implementa políticas decididas por um sistema econômico global. Por
isso, ele será usado todas as vezes que for o caso de desviar o eixo do
descontentamento não para cima, ou seja, em direção àqueles que realmente
decidem, mas para o lado, a saber, em direção àqueles que servirão de bode
expiatório da vez, sejam poloneses, ciganos, negros ou árabes.
Nos últimos dias, os ingleses
descobriram uma obviedade: sair da Comunidade Europeia é impossível, daí esta
situação digna de Monty Python de um país tentando adiar a implementação de uma
decisão que ele mesmo tomou. As economias nacionais não existem mais.
Por essa razão, a luta pela
defesa contra a espoliação econômica não passa pelos Estados nacionais, mas
pela politização das decisões econômicas impostas por organismos
transnacionais, como a União Europeia, o FMI e o Banco Mundial. Mas faz parte
de uma certa gestão da política atual desviar continuamente os eixos reais dos
problemas para espaços imaginários.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/
01/07/16
Nenhum comentário:
Postar um comentário