terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

APARÍCIO TORELLY, O PIONEIRO DO HUMOR INTELIGENTE NO BRASIL

 

 



Por THEODIANO BASTOS  

Caro leitor, leiam com atenção o texto que segue.

Barão de Itararé: a vida trágica e o humor anárquico de um ícone do jornalismo

 

'Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades' - “Quem inventou o trabalho não tinha o que fazer”

"Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos", do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), por exemplo, virou "Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mais vivos". Já o lema integralista "Deus, Pátria e Família", de Plínio Salgado (1895-1975), ganhou nova versão: "Adeus, Pátria e Família!".

 

 

Na manhã de 19 de outubro de 1934, o jornalista gaúcho Apparício Torelly (1895-1971) saía de casa em Copacabana, no número 188 da rua Saint-Romain, rumo ao Centro, onde trabalhava, quando seu carro, um Chrysler, foi interceptado por dois veículos. Cinco homens, alguns deles armados, sequestraram o editor do Jornal do Povo.

"Tem família?", perguntou um dos sequestradores, já com os carros batendo em retirada. "Isso não vem ao caso", respondeu o sequestrado. "Nem é da conta dos senhores". "Escreva despedindo-se", continuou o sujeito. "É um favor que lhe prestamos". "Dispenso-o", retrucou a vítima.

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Logo, Torelly descobriu que os homens que se diziam policiais eram, na verdade, oficiais da Marinha. Estavam indignados com a publicação de um folhetim sobre a Revolta da Chibata, liderada pelo marinheiro João Cândido (1880-1969), o Almirante Negro. Como Torelly se recusou a suspender a publicação, que denunciava os maus-tratos na Marinha, foi espancado.

Os sequestradores cortaram seus cabelos, furaram os pneus de seu carro e o abandonaram, quase nu, num local deserto. Na tarde daquele mesmo dia, uma sexta-feira, depois de voltar para a redação, Torelly pendurou, na porta de sua sala, uma placa com os dizeres: "Entre sem bater".

"O Barão é daqueles que começam uma partida do zero. É como se tivesse inventado as regras do jogo", afirma o jornalista Cláudio Figueiredo, autor da biografia Entre Sem Bater - A vida de Apparício Torelly - O Barão de Itararé (2012). "Foi muito mais do que 'frasista'. Foi um humorista revolucionário, anárquico, inovador. Colocar o foco sobre um único aspecto de sua obra seria como julgar Pelé por sua atuação no Cosmos, já no seu fim de carreira".

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'Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades'

Fernando Apparício de Brinkerhoff Torelly nasceu no Rio Grande, município a 317 quilômetros de Porto Alegre (RS), no dia 29 de janeiro de 1895. Seu pai, João da Silva, era brasileiro, e sua mãe, Maria Amélia, uruguaia. O pequeno Apparício ainda não tinha completado dois anos quando a mãe, então com 18, tirou a própria vida, com um tiro na cabeça. Até hoje, não se sabe ao certo a razão do suicídio. Especula-se que tenha sido por causa do temperamento violento do marido.

Órfão de mãe, Apparício foi mandado para um colégio jesuíta em São Leopoldo. Apesar de sua pouca idade, já esbanjava a irreverência que o tornaria famoso. Tanto que foi lá, no Colégio Nossa Senhora da Conceição, que criou seu primeiro jornal de humor, o Capim Seco, totalmente escrito à mão.

Certa vez, o professor de português pediu a Apparício que conjugasse um verbo qualquer no tempo mais que perfeito. "O burro vergara ao peso da carga", respondeu o jovem. Nada demais, não fosse Oswaldo Vergara o nome do tal professor.

Antes de seguir carreira como jornalista, Apparício Torelly tentou a medicina. Tinha 17 anos quando se matriculou na Escola de Medicina e Farmácia de Porto Alegre. Ao chegar atrasado a uma aula de anatomia, o professor Sarmento Leite pegou um fêmur e lhe perguntou: "O senhor conhece este osso?". Ainda ofegante, o estudante respondeu, estendendo a mão: "Não, muito prazer!".

Em outra ocasião, durante uma prova oral, o professor, vendo que Apparício não sabia as respostas, pediu, irônico, a um funcionário da faculdade: "Me traga um pouco de alfafa, por favor". "E, para mim, um cafezinho", completou o aluno que, no entanto, não chegou a concluir o curso e largou a faculdade em 1919.

"A vida do Barão de Itararé é cheia de passagens trágicas. A começar pelos seus problemas de saúde, como a hemiplegia (paralisia total ou parcial da metade lateral do corpo)", conta Mary Stela Surdi, mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a dissertação Barão de Itararé - A Linguagem do Humor (1998). "Desde muito jovem, foi preso e apanhou incontáveis vezes. Mas, sempre lidou com a perseguição político-ideológica com humor e inteligência".

'Quem inventou o trabalho não tinha o que fazer'

Com passagem por diversos jornais e revistas, tanto da capital gaúcha quanto do interior do Estado, Apparício Torelly tentou a sorte no Rio de Janeiro. Na bagagem, trazia seu primeiro e único livro, Pontas de Cigarro, de poesia, de 1916, e seu primeiro jornal de humor, O Chico, que teve tiragem de oito mil exemplares, de 1918.

Aos 30 anos, foi bater à porta de O Globo. "O que quer fazer aqui?", perguntou o então dono do jornal, Irineu Marinho (1876-1925). "Qualquer trabalho serve", respondeu Apparício. "De varredor a diretor do jornal, até porque não vejo muita diferença". Sua primeira coluna, intitulada Despreso, foi publicada na versão matutina do jornal, em 10 de agosto de 1925.

Ao longo da carreira, Apparício Torelly teve dois pseudônimos: Apporelly, uma fusão de "Apparício" e "Torelly", e Barão de Itararé, o mais famoso deles, em homenagem à batalha que nunca aconteceu, na divisa entre São Paulo e Paraná, entre as tropas de Washington Luís e de Getúlio Vargas.

Com a morte de Irineu Marinho em 21 de agosto de 1925, vítima de infarto, Torelly migrou para as páginas do jornal A Manhã, de Mário Rodrigues (1885-1930), pai dos jornalistas Mário Filho (1908-1966) e Nelson Rodrigues (1912-1980). Batizada de Amanhã Tem Mais..., a coluna diária de Apporelly estreou em 2 de janeiro de 1926 e fez enorme sucesso entre os leitores.

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"Eles não perdiam aquela saraivada de frases, versinhos e trocadilhos com nomes de políticos", afirma o jornalista e escritor Ruy Castro em O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (1992). "Algumas das melhores frases já tinham sido inventadas por Bernard Shaw, Mark Twain ou Oscar Wilde, a quem Apporelly esquecia de citar. Outras, às vezes muito engraçadas, eram dele mesmo".

Entre outros trocadilhos famosos, Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), líder da Revolução de 1930, virou "Getúlio Dor Neles Vargas" e Filinto Müller (1900-1973), o torturador do Estado Novo, "Filinto Mula". Sobre Getúlio, aliás, disse, certa ocasião: "Sabe como se chama nosso caro presidente? Gravata Preta. Adapta-se a qualquer roupa e a qualquer regime".

Além de fazer trocadilhos com nomes de políticos, Torelly se especializou em criar paródias para frases famosas.

Apenas quatro meses depois de começar a trabalhar no jornal A Manhã, Torelly decidiu fundar seu próprio jornal: A Manha. "O jornal de humor que ele criou e manteve com ímpeto quixotesco sobreviveu de 1926 a 1959", explica o jornalista Rodrigo Jacobus, Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com a tese Um Nobre Bufão no Reino da Grande Imprensa (2010). "Ao longo desse período, pontuou com seu humor alguns dos maiores acontecimentos do século 20, como a Revolução de 30, o Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial...".

Em 10 de outubro de 1929, A Manha passou a circular como suplemento do jornal Diário da Noite, do jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968), o "Chatô". A sociedade, porém, durou pouco: cinco meses.

Além da edição diária, Torelly publicou, ainda, três números de Almanhaque, ou seja, o almanaque do jornal A Manha. Um número saiu em 1949 e dois, em 1955. Todos traziam jogos, piadas e adivinhações. Seu principal parceiro na nova empreitada foi o chargista e ilustrador paraguaio Andrés Guevara (1904-1963).

SAIBA MAIS EM: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59689669

 

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