AMOR,
O FILME Theodiano
Bastos
“Quem
de jovem não morre, de velho não escapa” Autor
desconhecido
Tem mais de um ano que eu (78 anos) e minha esposa (76
anos) que assistimos a esse filme em Vitória/ES e fiquei tão chocado com o final do
filme que fui embora antes de seu término. Vi-me retratado no filme e passei a
ter medo de enfrentar o mesmo drama no final da vida, embora não tenha medo de morrer.
Amor
(Amour) é um drama (Áustria/França/Alemanha) e Michael
Haneke é um diretor conhecido pela crueza de seus filmes – não apenas pelo
estilo direto das histórias, mas também pelo incômodo que por vezes causa no
espectador. Desta forma, o anúncio de que faria um filme intimista sobre o amor
causou surpresa, afinal de contas um romance tradicional está bem longe do
perfil do cinema do diretor. Entretanto, ao assistir o longa-metragem fica bem
nítido o quanto Amor,
o filme, se enquadra dentro da filmografia de Haneke.
Sinopse
e detalhes
Georges
e Anne são um casal de músicos aposentados. Quando Anne tem um problema de
saúde, o laço de amor entre os dois será severamente testado.
Georges (Jean-Louis
Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) são um casal de aposentados, que
costumava dar aulas de música. Eles têm uma filha musicista que vive com a
família em um país estrangeiro e só aparece para tentar dar um golpe na mãe e
se apropriar dos bens. Certo dia, Anne sofre um derrame e fica com um lado do
corpo paralisado e aí aparecem os sintomas do temido Mal de Alzheimer. O casal
de idosos passa por graves obstáculos, que colocarão o seu amor em teste. Sem
recursos para custear cuidadoras, ele mesmo tem de cuidar da esposa que passa a
usar fraldas fica totalmente dependente.
******************
“Depois
de arrombarem a porta de um antigo apartamento, policiais franceses invadem o
local. Cobrindo o nariz para evitar o mau cheiro, um deles abre as janelas
enquanto os demais se ocupam em descobrir o que há em um aposento cuja entrada
foi vedada com fita adesiva – e é ali que encontram o cadáver arroxeado de uma
mulher idosa que, arrumada com cuidado sobre a cama, tem o corpo cercado por
pétalas coloridas. Apenas três ou quatro minutos se passaram desde o início de Amor e o diretor austríaco
Michael Haneke já ilustra, com sua brutalidade habitual, uma cena aparentemente
cruel que, no detalhe das flores, revela a natureza por trás daquele ato: o
sentimento que intitula a narrativa.
Filme
relativamente doce para os padrões de um cineasta acostumado a torturar seu
público e a encarar a humanidade com imenso ceticismo, Amor representa uma
experiência difícil por nos lembrar o tempo inteiro de que todos dividiremos o
mesmo desfecho: ricos ou pobres, conservadores ou liberais, ocidentais ou
orientais, cessaremos de existir e nos converteremos em carne inanimada, em cadáveres
de olhos apagados e esfíncteres abertos, cheirando a excremento e, em pouco
tempo, a podridão sem em nada lembrarmos as figuras repletas de sonhos, mágoas,
memórias, humores e amores que expuséramos ao mundo ao longo dos anos. Aliás,
neste aspecto, Haneke já demonstra inteligência ao escalar os veteranos
Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva nos papéis de Georges e Anne, casal
que acompanharemos ao longo das duas horas seguintes – afinal, como representar
melhor a implacável e inexorável passagem do tempo do que trazer, agora velhos
e frágeis, os atores que víramos belos e cheios de vida em obras como Um Homem, Uma Mulher e Hiroshima Meu Amor?
Adotando
um olhar objetivo e repleto de realismo através de sua estratégia habitual de
rodar longos planos com uma câmera estática que só quebra esta imobilidade para
acompanhar lateralmente os personagens em panorâmicas e travellings discretos,
Michael Haneke nos apresenta a Georges e Anne em um período tranquilo de sua
velhice: habituados e confortáveis com a presença um do outro após décadas de
casamento, eles levam uma vida social ativa e parecem razoavelmente felizes em
seu cotidiano tranquilo – até que o tempo os alcança e, cada vez mais
adoentada, Anne se vê dependente do marido para tudo, o que leva a imensos
sacrifícios por parte dos dois enquanto o apartamento vai se transformando em
uma enfermaria triste à medida que passa a abrigar cadeira de rodas, cama de
hospital e outros apetrechos médicos necessários para conduzir a mulher por
mais um dia.
Remetendo
ao doloroso drama islandês Vulcão,
que demolia o espectador através dos ininterruptos gemidos de sofrimento de uma
senhora inválida, Amor
nos oferece contexto para a vida de seu casal principal através de pequenos
interlúdios que servem como recortes de sua trajetória, desde os planos que
revelam os vários aposentos que, vazios, expõem um mundo de histórias em sua
aparência gasta, até o instante em que Anne folheia um álbum de fotografias que
parecem ilustrar sua existência em pequenos saltos. Trata-se de uma abordagem
evocativa, claro, mas seca como o restante da narrativa, já que Haneke não é
diretor de se entregar ao melodrama – e, assim, as indignidades que passam a se
acumular no cotidiano de Anne (como descobrir que urinou na cama e passar a
usar fraldas que devem ser trocadas pelo marido) são enfocadas de forma direta,
como simples fatos da vida. Além disso, o cineasta também explora pequenos e
breves momentos de leveza na decadência da mulher, como na cena em que esta
brinca com sua cadeira de rodas elétrica. O mais admirável em Amor, contudo, é o
respeito que o diretor demonstra para com seus personagens – e mesmo que exiba
passagens difíceis do dia a dia do casal, Haneke parece respeitar certos
limites que acabam sendo expostos por uma fala dita por Georges: “Nada disso merece ser mostrado ou exibido” – uma
postura diametralmente oposta àquela demonstrada, por exemplo, no desfecho do
recente Lincoln,
quando Spielberg simplesmente não resiste explorar a morte do presidente para
arrancar algumas lágrimas adicionais.
Descartando
qualquer trilha sonora que pudesse conferir drama artificial à narrativa, o
diretor emprega, em vez disso, os sons diegéticos de maneira brilhante não só
para criar determinadas atmosferas como também para oferecer informações
importantes – e a torneira que Georges deixa aberta em certo momento, por
exemplo, não só confere tensão à cena como, pouco depois, ao ser fechada fora
de campo, nos alerta para o despertar de Anne. Da mesma forma, logo no início
da projeção Haneke faz seu jogo habitual de obrigar o espectador a se encarar
como tal ao incluir um longo plano no qual vemos uma plateia lotada que se
prepara para assistir à performance de um músico – e como o cineasta se recusa
a posicionar Georges e Anne no ponto mais forte do quadro, somos obrigados a
percorrer os rostos de dezenas de figurantes em busca de alguma informação que
possa ser relevante. Com isso, Haneke não apenas salienta o número de histórias
possíveis presentes naquele ambiente como ainda força nossa identificação com o
casal, que se encontra na tela como um reflexo do próprio espectador no meio de
uma plateia.
Mas
são as performances de Trintignant e Riva que acabam por conferir força
descomunal ao filme: grisalhos, trágicos e vulneráveis com suas peles flácidas
e repletas de manchas senis, eles incorporam com talento um casal que traz
décadas de memórias compartilhadas – e parte da dedicação de Georges à esposa
vem não só do amor e do carinho que sente por esta, mas da constatação de que
boa parte do que ele próprio viveu reside agora apenas nas lembranças de Anne,
morrendo com esta e destruindo boa parte de sua própria história. Além disso,
vê-lo abraçado à mulher inválida enquanto a ajuda a percorrer pequenas
distâncias em seu apartamento é um gesto que, por si só, carrega um mundo de
significados – desde o mais simples (um homem que ajuda a esposa a se
movimentar) até outros que evocam um passado de abraços apaixonados, de danças
e carinhos.
Assim,
não deixa de ser assustador pensar que, de certa forma, Anne é uma felizarda
por ter tido a oportunidade de construir memórias e envelhecer – e que as
indignidades de seu terceiro ato de vida são uma nota de rodapé sob o longo texto
que representa sua jornada. E que, neste sentido, atravessamos nossas
existências buscando estabelecer laços e despertar amores que nos tornem dignos
de, ao fim, termos nossos corpos enfeitados com pétalas coloridas por aqueles
que deixamos
para trás.”
Fonte: http://www.adorocinema.com/
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