Ricardo Rangel:
A discussão da obrigatoriedade da vacina revela o viés autoritário
brasileiro.
A vacina contra a Covid-19 ainda não existe e se passarão alguns meses
até que ela esteja disponível em larga escala. Mesmo assim, estamos brigando
entre nós sobre se a vacinação deve ser obrigatória ou não.
A imunidade de rebanho será alcançada com a vacinação de algo entre 50%
e 80% da população, enquanto pesquisas mostram que mais de 80% dos brasileiros
se inocularão voluntariamente (a campanha de conscientização aumentará esse
número). Ou seja, a vacinação voluntária deve ser suficiente, e o debate sobre
a obrigatoriedade é prematuro e vazio. Sua única utilidade é ajudar a nos
revelar quem somos.
A discussão revela que perder tempo e energia brigando à toa é uma
espécie de esporte nacional, principalmente nestes tempos de polarização
política. Revela a superficialidade com que discutimos questões públicas, e que
adotamos posições radicais sobre problemas que não compreendemos (e que
eventualmente nem existem).
Revela a natureza de nossos políticos, que, em vez de trabalhar juntos
para resolver a logística de produzir, distribuir e aplicar a vacina, preferem
bater boca em busca de ganhos eleitorais. Ao politizar o assunto, Doria e
Bolsonaro envenenam a população contra a vacina e põem em risco suas próprias
políticas de saúde.
Revela o clássico viés autoritário brasileiro, com uma porção de gente
defendendo, a priori, o uso da mão pesada do Estado para resolver um problema
que não existe, provavelmente não existirá, e, ainda que venha a existir, será
mais bem resolvido com campanha de vacinação do que com coerção.
“Doria e Bolsonaro envenenam a população contra a vacina e põem em risco
suas próprias políticas de saúde ”Revela a paranoia (ou má-fé) de quem equipara
obrigatoriedade a vacinação à força, quando há maneiras não violentas, e
melhores, de compelir alguém a fazer alguma coisa, desde multa à recusa de
serviços públicos (sanções contra quem deixa de votar, por exemplo).
Revela a natureza de uma personagem política nova, o liberal de araque
bolsonarista, que proclama que a obrigatoriedade “tolhe a liberdade de escolha
da população”. Diria a mesma coisa se, em vez de Covid-19, tivéssemos a peste
negra, que matou metade dos habitantes da Europa? A obrigatoriedade de parar no
sinal vermelho acaso “tolhe a liberdade de escolha da população”?
Liberais de verdade são menos rasos. O pai do liberalismo, John Locke,
escreveu que uma lei (que, por definição, restringe a liberdade) só será
legítima se “aumentar a liberdade geral”. John Stuart Mill afirmou que o único
propósito pelo qual o poder pode ser exercido legitimamente contra a vontade de
alguém é evitar danos a outros. A vacinação compulsória, desde que realmente
necessária, evita danos aos outros e aumenta a liberdade geral, de modo que
liberais de verdade não terão problema com ela. Liberais de verdade têm
problema é com liberais de araque.
Não é hora de falar de obrigatoriedade, mas de logística e de campanha
de vacinação: se houver resistência significativa da população, aí a gente vê o
que faz. Como dizia Tancredo Neves, que tinha mais visão e espírito público do
que Doria e Bolsonaro juntos, não se devem tirar as sandálias antes de chegar
ao rio. https://headtopics.com/br/da-obrigatoriedade-da-vacina-ricardo-rangel-16480152
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