Por MIGUEL NICOLELIS
Neurocientista e escritor. Professor
Emérito de Neurobiologia, Duke University. Fundador Instituto Nicolelis de
Estudos Avançados do Cérebro da ASSDAP
“Consulta de 10 minutos no Pronto Socorro
em San Francisco: mais de US$ 1.200 (sem nenhum procedimento ou medicação
envolvidos) dos quais eu tive que cobrir do meu bolso US$ 250, mesmo tendo
seguro de saúde. Este pequeno exemplo ilustra porque não é à toa que 500 mil
americanos por ano declaram falência pessoal por não conseguirem pagar seus
gastos com saúde!
No dia 20 de fevereiro de 2025 eu estarei celebrando
36 anos da minha chegada aos EUA. Muita coisa mudou no país que me acolheu e
permitiu que eu realizasse todas as minhas aventuras científicas nestas quase
quatro décadas.
De fato, durante uma recente visita a San Francisco, na Califórnia, eu finalmente me dei conta que o país que eu encontrei em 1989 simplesmente não existe mais.
Tal constatação não é minha apenas, mas reflete o pensamento de muitos colegas
que, como eu, também chegaram ao país no final da década de 1980, atraídos
pelas condições incomparáveis para se fazer ciência de ponta, bem como a
abertura para que jovens cientistas estrangeiros pudessem exercer seus talentos
em pé de igualdade com americanos natos.
As chagas e cicatrizes desta mudança dramática no
modo de vida americano ocorrida nestes 40 anos não poderia ter ficado mais
clara do que num tour pelo centro de San Francisco, em busca de um
pronto-socorro que pudesse me atender devido a uma emergência médica.
Enquanto um motorista de táxi que não falava uma
palavra de inglês tentava encontrar o hospital que se prontificou a aceitar o
meu seguro privado de saúde – condição essencial para ser atendido – , do banco
de trás eu constatava consternado o grau de devastação, miséria humana e
degradação do coração e alma de uma das cidades mais icônicas do país.
Ao longo do trajeto, eu observei um enorme número de
pessoas em condição de rua, vivendo em condições abjetas, muitas transformadas
em verdadeiros zumbis de corpos contorcidos, dada uma epidemia de abuso de
drogas fora de qualquer controle, que tem como um dos destaques o opiáceo
sintético (fentanil) de preço muito baixo e que em 2023, apesar de uma baixa
significativa, ainda causou pelo menos 653 mortes por overdose na cidade.
Em todo país, segundo o National Center for Health
Statistics do Central for Disease Control and Prevention, das quase 108 mil
mortes por overdose no país em 2023, 81 mil foram causadas por consumo de
opióides, principalmente do fentanil.
Tristemente, as cenas que eu testemunhei in loco em
nada diferiram de um tour semelhante realizado, apenas alguns meses atrás, pelo
centro de São Paulo. Mas aqui estava eu, no centro de uma grande metrópole
americana cujo PIB – considerando-se o núcleo econômico formado por San José,
San Francisco e Oakland – ultrapassou US$ 1 trilhão em 2019, definindo a
terceira maior economia dos EUA e quase metade do PIB brasileiro de 2023.
Anos atrás, a população de San Francisco foi
convencida pelas lideranças da cidade que ao oferecer atraentes benefícios para
que empresas de alta-tecnologia se mudassem para a cidade, benefícios estes
totalmente subsidiados pelos contribuintes da cidade, seria possível
implementar um ambicioso processo de revitalização do seu centro. Claramente,
nada disso ocorreu.
Apesar de obter isenções fiscais e toda sorte de
outros benefícios, a atração dos diferentes empreendimentos dos Overlords das
BigTechs além de enriquecê-los não trouxeram qualquer tipo de melhora da
condição de vida dos habitantes mais vulneráveis de San Francisco. Muito pelo
contrário.
Com a inflação dos custos de moradia, eliminação de
empregos e crise crônica do financiamento da rede de escolas públicas da
cidade, San Francisco hoje encapsula todas as crises que tem assolado os EUA
nas últimas décadas. Uma crise profunda que tem levado os jovens americanos a
acreditar piamente que eles jamais conseguirão atingir a mesma qualidade de
vida dos seus pais e, em última análise, se transformarem na primeira geração
de americanos, após a Segunda Guerra Mundial, que terá seu acesso ao famoso “American
Dream” bloqueado de forma categórica.
Se todo o espetáculo dantesco do trajeto até o
hospital não fosse suficiente, a minha epopeia californiana rapidamente ganhou
contornos dramáticos quando eu fui informado por uma médica do pronto-socorro
que, infelizmente, não havia nenhum oftalmologista disponível que pudesse me
atender e verificar se a infecção que havia sido diagnosticada havia afetado de
qualquer forma o meu olho esquerdo.
Uma rápida consulta com a minha assistente de longa
data na Carolina do Norte, a incomparável Susan Halkiotis, revelou que nem
mesmo na cidade onde eu resido há 30 anos, e mesmo no hospital da universidade
– uma das maiores do país – onde trabalhei por 28 destes anos, eu também não
conseguiria uma consulta com um oftalmologista, uma vez que a espera média para
tal consulta era de 5-8 semanas!
Confrontado com esta situação surreal, confinado num
quarto de hotel do estado mais rico do país que mais investe em saúde no mundo,
algo em torno de US$ 4,8 trilhões apenas em 2023 (mais de 2 vezes o PIB
brasileiro), mas que não possui um sistema de saúde público universal, algo
como o SUS brasileiro, eu tomei a única decisão que me restava: ligar para o
consultório do meu colega de turma, um dos maiores oftalmologistas do Brasil,
Dr. Samir Bechara.
Informado que meu amigo estava passando férias na
Espanha, eu por um momento quase entrei em desespero. Pois bem, minutos depois,
eis que o meu telefone toca e, diretamente de um povoado no caminho de
Compostela, lá estava ele, o meu grande amigo Samir, imediatamente se
disponibilizando para realizar uma consulta on-line e basicamente resolver a
minha angústia em poucos minutos.
Da mesma forma que o grande Samir, que realizou
várias destas consultas on-line nos dias subsequentes, a minha querida
dermatologista, Dra. Sandra Tuma, me monitorou desde o início dos sintomas, até
meu regresso ao Brasil. Com eles, a minha maga clínica, Dra. Naira Hojaij,
assumiu toda a minha supervisão clínica de forma remota, até meu retorno a São
Paulo e depois dele.
Sem a instantânea solidariedade, empatia, e
profissionalismo fora do esquadro destes três maravilhosos médicos brasileiros
eu estaria literalmente a Deus dará.
Poucas semanas depois deste incidente, que ilustra
claramente a decadência americana em questões absolutamente primordiais, como
saúde pública, uma pequena maioria de americanos – uma das mais baixas de toda
a história das eleições presidenciais do país – elegeu um candidato que baseou
sua campanha em hostilizar de forma grotesca os imigrantes e toda sorte de
valores humanísticos que nos idos de 1989 permitiram que eu e outros cientistas
escolhessem os EUA para desenvolver a nossa arte.
Tudo isso num país com inflação anual de 2.3% e um
dos maiores crescimentos econômicos do pós-pandemia. Mas nada disso realmente
importa no mundo da pós-verdade.
Longe de defender as práticas e carreira da candidata
do Partido Democrata, eu interpretei a eleição de um populista, condenado
múltiplas vezes pela justiça estadual de Nova York, que tentou subverter
ilegalmente os resultados das eleições de 2020, resultando numa invasão
violenta sem precedentes de seus seguidores ao Congresso americano, como um
sinal claro que os verdadeiros furacões que estão varrendo do mapa o “American
Dream” são ainda mais devastadores do que aqueles gerados no Golfo do México ou
no Oceano Atlântico.
Apesar de toda destruição e perdas humanas deixadas
ao longo do seus rastros, nem de longe estes fenômenos climáticos, decorrentes
do aquecimento global – ignorado por boa parte dos americanos e seus políticos
– , se comparam ao grau das ameaças criadas pela erosão dos valores éticos e
humanísticos do Iluminismo que assola não só a sociedade americana, como do
resto do mundo, incluindo, evidentemente, o nosso querido patropi.
As consequências devastadoras da divisão profunda que
caracteriza o presente processo de tribalização de boa parte, senão da
totalidade, das sociedades humanas ao redor do planeta, é a base de uma crise
existencial nunca antes enfrentada pela nossa espécie. Eu digo isso porque este
processo tende a reverter, de forma drástica, toda a receita de sucesso que
permitiu ao Homo [not so] sapiens sobreviver às inúmeras intempéries geradas
por um Universo e um planeta em contínuo fluxo.
Difícil prever o que o futuro nos reserva como
resultado do nosso completo abandono de tudo aquilo que nos permitiu chegar até
aqui.
Quem viver, verá!
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