(por Cristovam Buarque)
O governo Bolsonaro deixará tristes marcas, a mais
grave talvez seja a degradação do prestígio e da confiança do povo nos
militares
Ao dizer que homem armado não ameaça, insinuando que usa logo a arma, o
comandante da aeronáutica passou a ideia de que as Forças Armadas não avisariam
antes de agir contra o Congresso, ou ao menos contra o senador Omar Aziz. Ao
fazer isto, o comandante degradou a Aeronáutica por colocá-la ao nível de um
homem armado, com faca ou revólver ameaçando um desafeto.
A Aeronáutica é uma força, com missão nobre: usar seus soldados, aviões
e bombas para defender a Pátria contra inimigos externos. Não pode ser
comparada a um homem enlouquecido por alguma raiva.
O governo Bolsonaro deixará tristes marcas – queima de florestas,
descuido com a epidemia que matou mais de meio milhão de brasileiros, muitos
outros equívocos e atos antipatrióticos –, mas uma das mais graves de suas
marcas poderá ser a degradação do prestígio, do respeito e da confiança do povo
para com suas Forças Armadas.
A eleição de Bolsonaro foi pelo voto, resultado dos erros de governos
democráticos anteriores. Ele
não foi imposto pelas Forças Armadas, nem mesmo era um militar desde quando foi
expulso do Exército. Mas ele conseguiu comprometer as Forças Armadas ao
pôr militares dentro de seu governo e expor incompetência e suspeitas, ainda
não comprovadas, de corrupção por oficiais.
Durante os 21 anos do regime militar, o Brasil enfrentou a brutalidade
de uma lamentável ditadura: as Forças Armadas podiam ser odiadas pelos
perseguidos ou opositores, seus oficiais podiam ser temidos, mas eram
respeitados pela competência e honestidade. Todos os quatro presidentes
terminaram suas vidas aposentados sem riqueza.
Mário Andreaza fez estradas e quando aposentado teve de receber ajuda
para tratar de sua saúde. Costa Calvalcanti fez Itaipu e não deixou qualquer
fortuna para a família. Foram competentes, honestos e respeitados, apesar de
merecerem críticas e repulsa como parte das maldades da ditadura.
O respeito e as críticas ficaram na história, quando as Forças Armadas
saíram do poder em um processo de negociação com as lideranças civis.
Diferentemente de outros países, no Brasil os militares entregaram o poder sem
serem derrotados, ficaram como participantes do processo de democratização.
Desde então, os governos eleitos, de direita, centro ou esquerda, foram
respeitados pelas FFAA em um comportamento democrático exemplar. E elas
receberam respeito da sociedade.
A eleição de Bolsonaro pareceu acender uma chama revanchista contra a
democracia e os civis, levando as Forças Armadas a aceitarem uma simbiose com
um governo incompetente que está destruindo o Brasil, florestas, ciência,
saúde, democracia, direitos conquistados, isolando o país como pária e motivo
de galhofas no mundo. E os militares se deixaram envolver, comprometidos e até
coniventes com os erros e incompetências. Deixaram de ser Forças Armadas e
passaram a ser parte do governo.
Esta simbiose começa a ameaçar a democracia ao ameaçar o Congresso e a
Justiça, ainda pior, quando as Forças Armadas passam a impressão de aliar-se a
setores armados, policiais, milícias e bandoleiros, para impedir o
reconhecimento do resultado das eleições. A imagem que aos poucos começa a
chamuscar nossas Forças Armadas poderá ser um dos piores legados do governo
Bolsonaro, mas a culpa não será apenas dele. Alguns oficiais colaboraram.
O resultado é que as pessoas desarmadas começam a se preparar contra as
ameaças insinuadas pelos armados. Depois que acabaram as ditaduras na
Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia e Brasil, circulava em meios acadêmicos
destes países a ideia de um pacto pela desmilitarização do continente. Alguns
sonhadores imaginavam que além de continental, o pacto poderia ser
transatlântico. Sem armas do outro lado das fronteiras terrestres e do oceano,
seria possível a extinção das Forças Armadas em todos os países da América
Latina e da África, liberando centenas de bilhões de dólares para investir em
educação, ciência, tecnologia, saúde, infraestrutura e policiamento para a
segurança interna, como fez Costa Rica há 70 anos.
O comportamento das Forças Armadas naqueles países apagou estas ideias
utópicas. Na constituinte atual no Chile, este assunto pode surgir, sem
prosperar por causa dos conflitos fronteiriços deste país com todos seus
vizinhos, Peru, Bolívia e até mesmo Argentina. O Brasil não tem esses
conflitos, e o desgaste que Bolsonaro provoca nas Forças Armadas pode fazer
ressurgir o tema por aqui, porque homem armado não ameaça e homens e mulheres
valentes desarmados reagem.
Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro https://www.facebook.com/BlogdoNoblat/posts/4833689223313067/