As redefinições da China
por Cristovam Buarque
Aproveitando a desaceleração na
agenda no fim do mandato, estive por alguns dias na China, a convite e
patrocínio total da Guangdong University of Technology para participar do
Seminário Inovação nos Brics e a comunidade global com futuro compartilhado”.
Aproveitei para adiantar meu estudo sobre “Porque a China deu certo”.
A visão
da China é motivo de admiração — aeroportos, estradas, trens, prédios e o
desempenho econômico ainda mais. Trinta anos atrás, o PIB da China era de US$
312 bilhões, do Brasil US$ 330 bilhões. Hoje o PIB chinês é de US$ 12.240
bilhões e do Brasil, US$ 2.000 bilhões.
Em poucos anos, conseguiram
inclusão de 100 milhões de pessoas na classe média, com renda per capita
equivalente à média da Europa; 400 milhões atingiram a da classe média
brasileira. As cidades estão ligadas por uma rede com 28.000 km de
“trens-bala”, enquanto toda a Europa tem 9.300 km. O nível de desenvolvimento
científico e tecnológico permite ter uma nave espacial circulando ao redor da
Lua. Ao lado desses sintomas de progresso, surpreende como as cidades são
metrópoles modernas, limpas, com paz, calçamentos impecáveis, sem pobreza
visível.
A surpresa é maior quando
entramos nas universidades e temos a chance de estudar as redefinições que o
pensamento chinês está promovendo sobre ideias dos tempos atuais. Os políticos,
os intelectuais e o povo estão redefinindo conceitos que não se adaptam às exigências
do bom funcionamento social nos tempos da robótica, da globalização e dos
limites ecológicos ao crescimento da produção material. O próprio conceito de
democracia está sendo redefinido em um país onde o único partido determina a
coesão no presente e o rumo do país para o futuro.
Devido à política de crescimento
industrial, Pequim e outras cidades chinesas estão entre as mais poluídas do
mundo. Diante disso, o governo chinês tomou medidas para controlar a poluição:
taxis são obrigados a usar energia elétrica e os motoristas pagam fortunas para
emplacar carros novos se movidos a combustível fóssil. Intelectuais e
dirigentes chineses dizem que a população certamente não votaria a favor dessas
decisões.
As manifestações recentes na
França, contra o aumento no preço do combustível fóssil para reduzir o consumo
e a poluição, são exemplo da contradição entre democracia dos eleitores de hoje
e a democracia comprometida com o futuro. Os interesses imediatos do eleitor e
os interesses de longo prazo do povo se chocam impedindo medidas que limitem o
consumo. Na democracia chinesa, os membros do partido discutiram por anos esse
assunto e decidiram reduzir a taxa de crescimento em nome do equilíbrio
ecológico.
É certamente um conceito de
democracia diferente do ocidental. Além disso, segundo eles, a primazia
absoluta do voto individual universal impede a adoção de filtros que levem em
conta o mérito de cada candidato. Disseram-me que lá a democracia não se baseia
apenas no voto, mas também no mérito demonstrado por cada candidato a cargo
público ao longo da carreira.
Quando perguntei sobre a
liberdade pessoal de ir e vir — na China para emigrar de uma província a outra
é preciso autorização do governo central — perguntaram a mim se no Rio de
Janeiro e outras grandes cidades do Brasil um cidadão pode caminhar livremente
nas ruas, ou se a violência impede a livre circulação. Explicaram também que lá
existe planejamento de instalações educacionais e hospitalares e a migração
livre desarticularia o equilíbrio entre a oferta e a demanda dos serviços.
O conceito de igualdade, que até
o período revolucionário era absoluto — todos com mesma renda e consumo —
passou a ser relativo. O governo chinês se propõe a erradicar a pobreza, mas
tolera a desigualdade de renda e consumo que decorre do mérito do cidadão,
graças ao talento, à persistência, à criatividade e ao empreendedorismo.
É cedo para saber se as
redefinições em marcha na China vão levar o Ocidente a rever seus conceitos ou
se o povo chinês vai preferir adotar conceitos ocidentais. Mas não se pode
negar que a revolução tecnológica em marcha, simultânea à globalização e aos
limites ecológicos, exige revisões de nossos conceitos. E não se pode negar que
os chineses estão tentando inventar a modernidade, na prática do desenvolvimento
e na teoria de conceitos.
Senador pelo PPS-DF e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) Artigo publicado pelo Jornal Correio Braziliense – 04/12/2018
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