Pobreza da aritmética
Cristovam Buarque
Artigo publicado no
jornal O Globo em 17/5/2014
Houve uma perda de
poder aquisitivo
“O Brasil passou a
acreditar que 22 milhões de brasileiros teriam saído da pobreza extrema. Este
discurso se baseava na ideia de que estas famílias passaram a receber
complemento de renda suficiente para ultrapassar a linha de R$ 70 por pessoa
por mês. Esta visão aritmética não resiste a uma análise social que
efetivamente cuide da pobreza.
Nada indica que uma
família sem adequada provisão de escola, saúde, cultura, segurança, moradia,
água e esgoto saia da pobreza apenas porque pode comprar aproximadamente oito
pães por pessoa a cada dia. A linha da pobreza não deve ser horizontal,
separando quem tem mais de R$ 2,33 por dia e quem não tem, mas uma linha
vertical, separando quem tem e quem não tem acesso aos bens e serviços
essenciais.
É como se, na época
da escravidão, o povo fosse convencido de que o país era menos escravocrata
apenas porque o proprietário gastava mais dinheiro na alimentação de seus
escravos. A separação entre o escravo e o trabalhador livre não era uma linha
horizontal definida aritmeticamente pela quantidade de comida que recebia, mas
uma linha vertical separando quem tinha e quem não tinha liberdade. Hoje, a
linha da pobreza efetiva deve ser determinada por quem tem e por quem não tem
acesso aos bens e serviços essenciais. E neste sentido, o Brasil não está
avançando na educação, na saúde, no transporte e na segurança.
Mesmo dentro de sua
lógica, o argumento aritmético fica frágil quando se observa como a renda dos
pobres avança e regride dependendo da inflação. Entre março de 2011 e abril
deste ano, a inflação medida pelo INPC foi de aproximadamente 19,6%, fazendo
com que cerca de três milhões de brasileiros tenham regredido abaixo da linha
aritmética da pobreza extrema. Mesmo com o aumento de 10%, anunciado dia 1º de
maio, 1,5 milhão de pessoas regrediram abaixo dessa linha.
Outra forma de ver
a fragilidade do argumento aritmético está na dependência em relação ao valor
do câmbio. Pela paridade do poder de compra, em março de 2011, o benefício
básico do Bolsa Família era equivalente a US$ 1,25 por pessoa, por dia, valor
adotado pela ONU como abaixo da linha da qual se caracteriza a pobreza extrema.
Com a desvalorização cambial, houve uma perda de poder aquisitivo de
aproximadamente 20%. Portanto, cerca de quatro milhões de brasileiros estão de
volta à pobreza (mesmo considerando o aumento de 10%). Pelo conceito social,
não aritmético, de pobreza, considerando acesso à saúde, à educação e ao
transporte de qualidade, o Brasil tem hoje pelo menos 22 milhões de brasileiros
abaixo da linha da pobreza extrema, número que não diminuiu nestes últimos
anos.
Cento e trinta e
seis anos atrás, o Brasil não aumentou a quantidade de comida nos pratos dos
escravos, fez a Lei Áurea que os libertou. A Lei Áurea não foi um argumento
aritmético, mas social. Por isso, ela se fez permanente, e nós a comemoramos
nesta semana sem recaídas ocasionadas pela inflação ou pelo câmbio, sem a
pobreza aritmética.”
Cristovam Buarque é professor da UFB e senador (PDT-DF)