Por que Ucrânia abriu mão de arsenal nuclear nos anos 1990
Durante a Guerra Fria, a terceira maior potência
nuclear do planeta não era o Reino Unido, a França ou a China, mas sim a
Ucrânia. E com o colapso da União Soviética (URSS) em 1991, a nação
recém-independente herdaria cerca de 3.000 armas nucleares deixadas por Moscou
em seu território.
Acordo
em Budapeste
Nos anos 1990, a Ucrânia decidiu abrir mão das armas
nucleares deixadas em seu território em troca de segurança e reconhecimento
como país independente. Tudo foi acordado por meio do Memorando de Budapeste,
um acordo assinado entre o governo ucraniano, a Rússia, o Reino Unido e os
Estados Unidos após o fim da URSS.
Três décadas depois, a Ucrânia está totalmente
desnuclearizada. E o tema volta à tona agora que o país se encontra em uma
posição delicada após a invasão territorial comandada pelo Kremlin, que ameaça
reagir a qualquer tentativa de interferência das potências da Otan (Organização
do Tratado do Atlântico Norte) no confronto.
Mas o que aconteceu nas últimas décadas para que a Ucrânia
passasse de uma das maiores potências nucleares do mundo para um país invadido
por seu maior vizinho?
Além disso, a presença dessas armas em território ucraniano teria ajudado a evitar a invasão? Há um risco de conflito nuclear na atual guerra? E por fim, a Ucrânia tem tentado possuir armamento nuclear, como acusa a Rússia?
À medida que os combates se intensificam na Ucrânia, duas versões da
realidade subjacente ao conflito apresentam uma divisão profunda, sem conceder
qualquer fundamento à outra.
A visão mais difundida e familiar no Ocidente, particularmente nos
Estados Unidos, é que a Rússia é e sempre foi um estado expansionista, e seu
atual presidente, Vladimir Putin, é a personificação dessa ambição russa
essencial: construir um novo império russo.
"Isso foi... sempre sobre agressão pura, sobre o desejo de Putin
por um império a qualquer custo", disse o presidente americano, Joe Biden,
em 24 de fevereiro de 2022.
A visão oposta argumenta que as preocupações de segurança da Rússia são
de fato genuínas — e que a expansão da Organização do Tratado do Atlântico
Norte (Otan) para o leste é vista pelos russos como direcionada contra seu
país.
Putin deixou claro por muitos anos que, se continuada, a expansão
provavelmente enfrentaria uma séria resistência por parte dos russos, inclusive
uma ação militar.
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Esta perspectiva não é apenas dos russos; alguns especialistas
influentes em política externa americana também compartilham dela.
Entre outros, o diretor da CIA do governo Biden, William J. Burns, vem
alertando sobre o efeito provocador da expansão da Otan na Rússia desde 1995.
Foi quando Burns, então comissário político da embaixada dos EUA em
Moscou, informou a Washington que "a hostilidade à expansão inicial da
Otan é quase universalmente sentida em todo o espectro político interno
aqui".
Otan avança em direção à Rússia
A Otan é uma aliança militar que foi formada pelos EUA, Canadá e várias
nações europeias em 1949 para conter a URSS e a expansão do comunismo.
Agora, a visão no Ocidente é que não é mais uma aliança antirrussa, mas
sim uma espécie de acordo de segurança coletiva destinado a proteger seus
membros de agressões externas e promover a mediação pacífica de conflitos
dentro da aliança.
Reconhecendo a soberania de todos os estados e seu direito de se aliar
com o estado que desejarem, a Otan aceitou ao longo do tempo solicitações das
democracias europeias para aderir à aliança.
A visão ocidental é que o Kremlin deve entender e aceitar que as
atividades da aliança, entre elas simulações de guerra repletas de tanques
americanos encenadas em estados bálticos próximos e foguetes posicionados na
Polônia e na Romênia — que os EUA dizem serem direcionados ao Irã — não
representam de nenhuma forma uma ameaça à segurança russa.
Várias advertências sobre a reação da
Rússia
A elite russa e a opinião pública em geral há muito tempo se opõem a tal
expansão, ao posicionamento de foguetes americanos na Polônia e na Romênia e ao
armamento da Ucrânia com arsenal ocidental.
Quando o governo do presidente americano Bill Clinton tomou medidas para
incluir a Polônia, a Hungria e a República Tcheca na Otan, Burns escreveu que a
decisão era "prematura, na melhor das hipóteses, e desnecessariamente
provocativa, na pior".
"Enquanto os russos se consumiam em ressentimento e se sentiam em
desvantagem, uma crescente tempestade de teorias de 'punhaladas pelas costas'
rodopiava lentamente, deixando uma marca nas relações da Rússia com o Ocidente
que perduraria por décadas", completou.
Em junho de 1997, 50 especialistas renomados em política externa
assinaram uma carta aberta a Clinton, dizendo: "Acreditamos que o atual
esforço liderado pelos EUA para expandir a Otan… é um erro político de
proporções históricas" que "perturbaria a estabilidade
europeia".
Em 2008, Burns, então embaixador americano em Moscou, escreveu à
secretária de Estado, Condoleezza Rice: "A entrada da Ucrânia na Otan é a
mais brilhante de todas as linhas vermelhas estabelecidas pela elite russa (não
apenas Putin). Em mais de dois anos e meio de conversas com os principais
atores russos, desde aqueles que se escondem nos recantos sombrios do Kremlin
aos críticos liberais mais ferrenhos de Putin, ainda não encontrei ninguém que
veja a Ucrânia na Otan como algo além de um desafio direto aos interesses
russos".
É de se perguntar — como fez o diplomata americano George F. Kennan, o
pai da doutrina de contenção da Guerra Fria que alertou contra a expansão da
Otan em 1998 —, se o avanço da Otan para o leste aumentou a segurança dos
estados europeus ou os tornou mais vulneráveis.
* Ronald Suny é professor de história e ciência política na Universidade
de Michigan, nos EUA.
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado aqui sob uma licença Creative Commons. Leia aqui a versão original (em inglês). ps://www.bbc.com/portuguese/internacional-60532668