Por José Eustáquio
Diniz Alves
"De forma semelhante, a China –
que já teve um passado de glórias – vem se destacando no cenário internacional desde as Reformas de Deng Xiaoping de
1978, mas que deve assumir a vanguarda efetiva do novo ciclo de expansão
da economia internacional depois do fim da pandemia de covid-19.
Os EUA lideraram a 2ª e a 3ª Revolução Industrial, mas a China
deve assumir a liderança da 4ª Revolução Industrial"
escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor
em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População,
Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas
– ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 04-05-2020.
A pandemia de coronavírus deve ter um impacto geoestratégico semelhante ao que o período
entre as duas Grandes Guerras – que assistiu a pandemia
da Gripe Espanhola e
o crash da Bolsa de Nova Iorque, junto
com a grande
depressão dos anos 1930.
Neste período houve a passagem do
centro dinâmico do mundo da Europa – onde existia a disputa
entre Alemanha, Reino Unido e França –
para os Estados Unidos, que vinha se destacando no
cenário internacional desde o fim da Guerra de Secessão (1861-65), mas que assumiu a vanguarda efetiva do novo ciclo
de expansão do capitalismo no pós Segunda Guerra Mundial.
De forma semelhante, a China –
que já teve um passado de glórias – vem se destacando no cenário internacional desde das Reformas de Deng Xiaoping de
1978, mas que deve assumir a vanguarda efetiva do novo ciclo de expansão
da economia internacional depois do fim da pandemia de covid-19.
Os EUA lideraram a 2ª e a 3ª Revolução Industrial, mas a China
deve assumir a liderança da 4ª Revolução Industrial. E a
pandemia de covid-19 deve acelerar as tendências geoestratégicas globais como
mostrei em artigo anterior (Alves, 17/04/2020).
O gráfico abaixo, com dados do
relatório WEO do FMI (de abril de 2020),
mostra que os EUA tinham um PIB (em poder de paridade de compras – ppp – a
preços correntes) de 13 trilhões de dólares em 2005, valor duas vezes superior
ao PIB da China que era de US$ 6,5 trilhões. Mas como os EUA tiveram um desempenho
pior durante a crise financeira de 2008/09, o PIB da
China pulou de 50% em 2005 para 82% do PIB americano em 2010. Nos anos
seguintes a China continuou a crescer em ritmo muito mais veloz e empatou com
os EUA em 2014 e, em seguida, assumiu a liderança como a maior economia do mundo (em
ppp), a partir de 2015. Na crise atual de 2020, novamente a China deve
apresentar melhor desempenho e deve chegar em 2021 com um PIB de US$ 31
trilhões contra US$ 22 trilhões dos EUA, segundo o FMI.
Assim, os dados do FMI não deixam
dúvidas de que a China vem apresentando um desempenho econômico excepcional nos
últimos 40 anos e que já ultrapassou os EUA como a maior economia do mundo (em
ppp). A questão da pandemia do novo coronavírus deve
reforçar estas tendências de longo prazo que já vinham se reconfigurando.
A tabela abaixo mostra a população e os
casos e as mortes pela covid-19 na China, nos EUA e no mundo no dia 03 de maio.
Nota-se que a China com 1,44 bilhão de habitantes (18,5%) do
total global, teve apenas 2,3% dos casos de covid-19 e apenas 1,9% das
mortes, enquanto os EUA com 4,2% da população global teve um terço dos
casos (33,3%) e teve 27,6% dos óbitos da covid-19. Em número de casos por
milhão a China ficou em 57,6 por milhão, contra 3.589,5 dos EUA. E no caso das
mortes, a China teve 3,2 óbitos por milhão e os EUA 207,2 óbitos por milhão.
Portanto, a China – mesmo sendo o epicentro original da pandemia –
conseguiu ser menos impactada em termos de morbimortalidade e
também em termos econômicos. A China vai voltar mais cedo e mais
rápido à “normalidade”, enquanto os EUA possuem um longo caminho ainda pela
frente.
Assim, a China que já
vinha ganhando espaço na economia mundial antes da
pandemia da covid-19, deve ampliar as suas vantagens geoestratégicas depois da
pandemia. Isto porque os efeitos da emergência sanitária vieram no sentido de fortalecer o Estado e
de enfraquecer o Mercado. O poder
dos governos centrais tendem a ganhar destaque no mundo pós-covídico e o “Consenso de
Beijing” tende a prevalecer sobre o “Consenso de Washington”.
O decálogo do Consenso de Washington, que fez
muito sucesso depois do fim da Guerra Fria e da prevalência do poder
unipolar dos EUA ficou defasado diante da nova
conjuntura internacional.
Consenso de Washington
- Disciplina fiscal e baixo déficit
público;
- Focalização dos gastos públicos
em educação, saúde e infraestrutura;
- Reforma tributária;
- Liberalização financeira;
- Taxa de câmbio competitiva;
- Liberalização do comércio exterior;
- Eliminação de restrições ao
capital externo;
- Privatização e venda de empresas
estatais;
- Desregulação das relações
trabalhistas;
- Propriedade intelectual.
Já as características do Consenso de Beijing –
que foram menosprezados no auge da era neoliberal – parece que encontra cada vez mais respaldo em um mundo em que o
mercado está em crise e as democracias não conseguem atender as demandas das
diversas populações nacionais.
Consenso de Beijing
- Promoção das economias em que
a propriedade estatal continue sendo dominante;
- Promoção de câmbio competitivo,
com mudanças graduais para evitar choques e controle cambial para evitar a
especulação;
- Políticas de promoção das
exportações (Export-led growth) com proteção da indústria
local e dos setores estratégicos do país;
- Reformas de mercado, mas com
controle das instituições políticas e culturais;
- Centralização das
decisões políticas e das estratégias de projeção nacional.
- Reforma Incremental, com
Inovação e Experimentação,
- Capitalismo de Estado (em
oposição ao Planejamento Socialista ou Capitalismo de Mercado Livre).
- Autoritarismo (em
oposição à democracia liberal)
Evidentemente, o impacto da covid-19 no sistema internacional será complexo. A globalização e a democracia já
estavam sendo questionadas antes. Donald Trump, com seu “America First” já vinha destruindo diversos acordos
internacionais, enfraquecendo a governança global e atuando contra o
multilateralismo.
A guerra comercial entre EUA e China está longe de uma solução e o presidente Trump ameaça
retomar o aumento das tarifas alfandegárias em
meio à pandemia. Do outro lado, a China contra-ataca em várias frentes,
inclusive avançando na criação de uma moeda digital para
agilizar as transações e minar a hegemonia internacional do dólar. Na semana
passada, o Banco do Povo da China (BPC), equivalente ao Banco
Central, anunciou o lançamento, em caráter experimental, de uma criptomoeda –
o Digital Renminbi – que funciona como um bitcoin, mas de forma centralizada e com lastro em dinheiro real, emitido pelo
BPC. O Renminbi digital será usado inicialmente apenas nas
cidades de Shenzhen, Suzhou, Chengdu e na província de Hubei (epicentro
original da pandemia de coronavírus). A nova moeda pode ser um golpe fatal não
só no dinheiro de papel (que é transmissor do vírus da covid-19) mas também
na hegemonia do dólar.
Na China, já há centenas de milhões de
consumidores já se acostumaram a pagar por compras sem dinheiro,
usando aplicativos populares para smartphones. Assim, o gigante asiático está
anos-luz à frente dos Estados Unidos em acabar com o papel-moeda à moda antiga.
Agora, o BPC está fazendo um experimento que pode marcar o início de uma
nova corrida econômica, desafiando a supremacia do dólar americano.
Para Washington, o Renminbi digital ameaça não só retirar o balanço
do poder financeiro global do dólar americano, mas também reduzir a capacidade
de os EUA aplicarem sanções econômicas a adversários.
Desta forma, o mundo está diante de uma
disputa entre os “Consensos” geoestratégicas globais, que pode acelerar a
possibilidade de ambos os países caírem na “Armadilha de Tucídides”, como mostrou o escritor e professor da Universidade de Harvard, Graham
T. Allison, no livro, “Destined for War: Can America and China Escape
Thucydides’s Trap?”. As crescentes disputa entre as duas potências que disputam
a hegemonia global pode
desaguar não só no enfraquecimento da governança global, mas até mesmo em um
conflito bélico.
Sem dúvida, a China e o leste asiático
devem emergir da atual crise com prestígio e poder aumentados.
Tudo indica, que as mudanças geoestratégicas caminharão mais para o lado do
Consenso de Beijing do que para o Consenso de Washington.
A Ásia – com mais da
metade da população mundial – tem um número muito menor de casos e de mortes
pela covid-19. A China já está com várias cidades e vários
setores econômicos abertos e funcionando. O Vietnã volta às
atividades a partir desta segunda-feira (04/05), mesmo que de maneira
progressiva e controlada.
O resultado da emergência
sanitária internacional, provavelmente, favorecerá os governo fortes em
detrimento do Estado mínimo. As próprias bandeiras dos
direitos humanos deverão sair da crise enfraquecidas depois que várias exceções
foram implementadas durante a pandemia. É claro que este mundo pós-covídico não
será nenhuma utopia.