‘O triste fim de uma utopia’, por
Zuenir Ventura
Acho que a perda da inocência ocorreu em 2005, com
o mensalão
"Com certeza esse não era o
desfecho esperado por Lula quando disse para a então candidata: “Dilma, sua
eleição será a realização final do meu governo”. Na verdade, é o final infeliz
de uma história que começou tão bem. Ao ser fundado em fevereiro de 1980, numa
assembleia no Colégio Sion, em São Paulo, o Partido dos Trabalhadores foi a luz
no fim do túnel no momento em que o Brasil vivia os estertores da ditadura
militar. Toda a energia social reprimida por mais de uma década passou a se
manifestar em movimentos de afirmação popular nos anos de 1978/79. Foi quando
as históricas greves do ABC paulista, que chegaram a realizar assembleias com
mais de 100 mil operários, revelaram um novo sindicalismo, liderado por um
fenômeno que estava surgindo sob a forma de um retirante nordestino, torneiro
mecânico barbudo de apelido Lula.
“A classe operária vai ao paraíso” deixou de
ser o título de um filme famoso de Elio Petri para ser visto como uma espécie
de vaticínio, reforçado pela coincidência de que o operário do filme também
tinha perdido um dedo na máquina da fábrica em que trabalhava. Os desiludidos
com as organizações tradicionais que não conseguiam tirar os militares do poder
embarcaram com esperança na promissora aventura. Entre os 128 que assinaram a
ata inaugural estavam os socialistas Antonio Candido e Sérgio Buarque, o
comunista Apolônio de Carvalho, os trotskistas Mario Pedrosa e Lélia Abramo, e
os cristãos Paulo Freire e Plínio de Arruda Sampaio.
Em 1976, o Grupo Casa Grande, que
promovia ousados debates ainda na vigência da censura, até sob ameaça de
bombas, trouxe aquela novidade paulista ao Rio pela primeira vez para uma
palestra. Era uma plateia de mais de mil estudantes e intelectuais, que ouviram
embevecidos Lula criticar estudantes e intelectuais. Franco, errando na
concordância, mas carismático, foi uma revelação.
No entanto, o resultado da
primeira experiência eleitoral de Lula, em 1982, não correspondeu ao prestígio
que adquirira como líder sindical. Ficou em quarto lugar na disputa pelo
governo de SP. Só em 1986 recuperou-se, ao ser eleito o deputado mais votado do
país. Mas em seguida vieram os revezes. Em 1989, perdeu as eleições
presidenciais para Fernando Collor. Em 1994, foi derrotado no primeiro turno
por FH, e o mesmo aconteceu em 1998. Só na quarta tentativa, em 2002, “a
esperança venceu o medo”, e ele conseguiu chegar à Presidência com mais de 50
milhões de votos.
Voltei a me encontrar com Lula em
1993, quando cobri para o “JB” a sua primeira Caravana da Cidadania, que
percorreu 54 cidades do Nordeste. Foi uma incrível experiência jornalística
acompanhá-lo durante 24 dias por bolsões de miséria que não dispunham de
progresso e cidadania, às vezes nem de água e comida. Assisti a cenas como a de
sua entrada triunfal em Nova Canudos, acompanhada de uma chuva torrencial após
três meses de seca inclemente. Escrevi então: “Velhos, jovens e crianças foram
para a praça celebrar Lula e a chuva. Cantaram e dançaram pela dádiva divina.
Houve até uma eucarística distribuição de pães aos sem-terra. No reino mítico
de Conselheiro, Padim Ciço, Lampião e Glauber Rocha não existe acaso. Só
milagre”. (Com razão, o dono do jornal me chamou de volta por eu “estar muito
lulista”)
Não foi só por esse mergulho no
Brasil profundo que admirei Lula, mas também porque o seu “partido da ética”
prometia não roubar nem deixar roubar. E, durante um tempo, foi assim. Era um
desafio encontrar em algum escândalo um membro do PT. Hoje, é não encontrar.
Acho que a perda da inocência ocorreu em 2005, com o mensalão. Não por acaso,
foi o ano em que Hélio Bicudo deixou o partido, ele mesmo, fundador e, após 36
anos, coautor do pedido de impeachment de Dilma. Antes ou depois dele, outros
colegas abandonaram ou foram abandonados, todos desiludidos: Heloísa Helena,
Marina Silva, Cristovam Buarque, Plínio de Arruda Sampaio, para só citar
alguns.
A crítica mais corajosa ao PT,
porém, partiu de quem não é dissidente e permanece nele até hoje. Em 2010, ao
avaliar os 30 anos da sigla, o então chefe de gabinete do presidente Lula,
Gilberto Carvalho, ressaltou os inegáveis avanços sociais, para em seguida
lamentar o “assemelhamento” nos defeitos. “Até o vício da corrupção entrou em
nosso partido”. Pela mesma razão, Tarso Genro propôs “refundá-lo”. Mas
preferiram afundá-lo.
Em 2014, estourou o petrolão, um
propinoduto cuja dimensão fez do mensalão um tímido ensaio. Ao ver agora a
extensão da encrenca de Lula no STF e na Lava-Jato, com ameaça de prisão, sinto
a tristeza dos que se lembram do tempo em que a única acusação contra ele era
de atentado à gramática, por falar “menas” e cometer anacolutos nos discursos.
O PT e Lula
podem não acabar. Mas a utopia que eles encarnaram, essa acabou. Melancolicamente."
Fonte:
http://oglobo.globo.com 12/05/16
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