Por José Casado
Gabriel Boric, presidente do Chile mostra o racha da
esquerda.
Lula, 77 anos, tropeçou no contraponto de Gabriel
Boric, 37. Atestou
o incômodo ao recorrer à ironia sobre a idade do presidente do Chile, nascido
em 1986, quando ele já disputava a sua segunda eleição pelo Partido dos
Trabalhadores: “Possivelmente, a falta de costume de participar dessas reuniões
(presidenciais) faz com que o jovem (Boric) seja mais seja mais sequioso, mais
apressado”.
Lula, aparentemente, acha um desperdício deixar a
juventude nas mãos dos jovens. Evocou a “autoridade” da experiência de quatro
décadas e meia de ativismo para desdenhar do presidente chileno num embate
sobre democracia, imperialismo e direitos humanos em ditaduras autoproclamadas
democráticas e de esquerda.
O pecado de Boric foi contestar a infalibilidade de
líderes como Lula e os dogmas da remota era soviética ainda celebrados em
frações de partidos como o PT. Semana passada, estavam numa de chefes de Estado
da Europa, América Latina e Caribe que terminou em impasse por causa da invasão
militar da Rússia na Ucrânia e das violações aos direitos humanos nas ditaduras
de Nicolás Maduro, na Venezuela, e de Daniel Ortega, na Nicarágua.
O chileno cobrou a defesa coletiva de avanços
civilizatórios: “Creio que é importante que, desde a América Latina, digamos
com clareza: o que acontece na Ucrânia é uma guerra de agressão imperial
inaceitável, onde se viola o direito internacional. Hoje é com a Ucrânia,
amanhã poderá ser com qualquer um de nós. Disso não duvidemos, apesar da
complacência que possamos ter com qualquer líder. O importante é o respeito ao
direito internacional. Nesse caso, ele foi claramente violado. Não pelas duas
partes, mas pela invasora que é a Rússia”.
Como Maduro e Ortega, Lula não esconde a empatia com
Vladimir Putin e seu projeto de resgate dos territórios perdidos na dissolução
da antiga Rússia czarista e, depois, na liquefação da União Soviética.
Culpa as potências do Ocidente por colocar seus
“cachorros” — a expressão é dele — da aliança militar (Otan) para latir na
fronteira do império imaginário de Putin.
Não disfarça, também, o desprezo pelo comandante da
resistência ucraniana à invasão militar, Volodymyr Zelensky: “Ficam estimulando
o cara e ele fica se achando o máximo. Fica se achando o ‘rei da cocada. quando
na verdade deveriam ter tido conversa mais séria com ele: ‘Ô, cara, você é um
bom comediante, mas não vamos fazer uma guerra para você aparecer’ ”.
A sedução autoritária motiva a divisão na esquerda
latino-americana. Em maio, durante uma reunião em Brasília, Lula estendeu
tapete vermelho e louvou Maduro com honras de Estado.
Relativizou o regime ditatorial, abstraiu uma década
de prisões lotadas com opositores, a tortura como sistema de repressão, o
desastre social que levou 5 milhões ao êxodo, a partilha dos cofres públicos
com gangues e abertura das fronteiras às facções narcogarimpeiras que expandem
negócios na Amazônia brasileira. “Narrativa”, classificou Lula. Boric retrucou:
Boric retrucou: “Não é narrativa, é realidade”.
Para Boric, “a violação dos direitos humanos deve ser
condenada sem matizes, independentemente de quais sejam as vítimas e os
algozes”. Ele escreveu recentemente:... “Assim como condenamos a violação dos
direitos humanos no Chile durante a ditadura, os golpes ‘brancos’ no Brasil,
Honduras e Paraguai, a ocupação israelense na Palestina, ou o intervencionismo
dos Estados Unidos, devemos, desde a esquerda, com a mesma força condenar a
permanente restrição de liberdades em Cuba, a repressão do governo Ortega na
Nicarágua, a ditadura na China e o debilitamento das condições básicas da
democracia na Venezuela”.
Houve uma época em que muita gente acreditava que o
socialismo era a única saída para a América Latina. Na paisagem sul-americana
de governos autoritários e militarismo exacerbado, parte da oposição armava
corações e mentes na defesa da revolução socialista como único caminho possível
para o desenvolvimento de países como o Brasil, estacionados na periferia do
capitalismo.
Com o tempo desmontaram-se seitas e catedrais
ideológicas construídas nesse período. Alguns seguem em cultos dogmáticos,
empenhados na defesa de ditadores cuja expressão de amizade pode ser aferida de
formas múltiplas, entre elas as contribuições de campanha.
A diferença entre Lula e Boric não é apenas de idade.
Eles representam correntes distintas de pensamento sobre o que significa uma
esquerda democrática, fundamentada na defesa de avanços civilizatórios.
A seu modo, estão no centro de um debate que não é
novo, porém relevante sobre uma certa ideia de democracia na América Latina. Publicado
em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851
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