Por Valentina Issa Castrillo, especial para a Gazeta do Povo
Após dois anos de seu primeiro governo, Chávez já
enfrentava crescente descontentamento e uma tentativa de golpe de estado. Já em
meados de 2002, tornou-se comum que empresas, organizações civis e outros
atores da vida pública venezuelana convertidos em “inimigos da revolução”
chavista monitorassem os freqüentes discursos compulsórios de Chávez na televisão
(as chamadas “cadenas”). Neles se davam ordens com efeitos imediatos, prédios e
terrenos eram desapropriados, e era possível saber para onde os destinos do
país iriam de acordo com o humor e a atitude do presidente. As ordens e
declarações televisionadas estavam acima do Diário Oficial, dos memorandos, das
sentenças e até das leis.
Foi assim, por meio de uma ordem de prisão
televisionada, que a juíza María Lourdes Afiuni foi levada do seu tribunal
diretamente para a penitenciária. Em dezembro de 2009, depois de chamá-la de
"bandida", e referindo-se a um decreto de Simón Bolívar que ordenava
a execução daqueles que “levassem um centavo do tesouro público” e dos juízes
que não aplicassem esse decreto, Chávez solicitou pena máxima (30 anos de prisão
na Venezuela) para ela “em nome da dignidade do país.” Afiuni acabava de
conceder liberdade condicional a um banqueiro que estava havia três anos detido
sem julgamento.
“Saí de casa para trabalhar e não voltei”
Na manhã de 10 de dezembro de 2009, Afiuni saiu de sua
casa para o seu local de trabalho, o tribunal de controle criminal 31 no
Palácio da Justiça em Caracas. De lá, saiu detida para a sede do Serviço
Bolivariano de Inteligência Nacional (SEBIN), e de lá para a prisão feminina
INOF (Instituto de Orientação Feminina), onde passou um ano e um mês. Ela
voltou para sua casa em fevereiro de 2011 sem útero, com a vagina e o ânus
reconstruídos, uma lesão na mama direita, insônia crônica, e viciada em
cigarro.
Em 2009, o governo já havia começado a usar a justiça
criminal como uma forma de aniquilar seus oponentes políticos, e já havia
sinais claros de desrespeito pela separação de poderes. No entanto, a juíza
Afiuni nunca teve nenhum dos chamados "casos políticos" em seu
tribunal, até o caso do Eligio Cedeño.
Em 10 de dezembro de 2009, às 11h30, a juíza Afiuni
decidiu cumprir a resolução da ONU e conceder liberdade condicional a Cedeño
pela duração de seu julgamento. Meia hora depois, por ordem do promotor do
caso, ela saía de sua corte algemada e com um colete à prova de balas. “Você
pode me dizer por que está me prendendo?”, perguntou para o promotor.
“Eu ainda não sei, vou ver,” contestou ele.
Os promotores na Venezuela não têm competência para
ordenar prisões, mas este conseguiu com um par de telefonemas.
Afiuni, já algemada, é levada do tribunal onde
trabalhava diretamente para a prisão: lá foi violentada e quase morreu por
hemorragias decorrentes de um aborto
“Isto é um cemitério de vivos”
Afiuni destaca a experiência de ter vivido na própria
carne “o outro lado” da administração da justiça. “Ditar uma medida privativa
de liberdade neste país é ditar uma sentença de morte,” disse Afiuni em uma
entrevista da prisão em 2010. Apesar das proibições de conversar com a mídia e
usar as redes sociais, ela sempre encontrou uma maneira de se expressar para
quem quisesse ouvir.
Ela chegou a uma prisão construída para abrigar 200
reclusas, mas com uma população de mais de 800. Foi trancada em uma cela de 2 x
3 metros, com manchas de sangue e fezes nas paredes azul turquesa, que era
fechada com um cadeado no lado de fora, e da qual não tinha permissão para sair
em momento algum. Nem mesmo quando houve um incêndio na prisão e evacuaram
todas as detentas, exceto ela. Felizmente, o fogo foi controlado e ela sofreu
apenas um pouco de asfixia. O banheiro de sua cela não funcionava e precisou
ser arrumado por encanadores que seus parentes levaram nos dias de visita.
Na prisão feminina de Caracas, onde Chávez disse, em
outro discurso, que Afiuni merecia estar “porque somos todos iguais perante a
lei”, 24 mulheres que ela havia condenado anteriormente estavam esperando por
ela. Recebia ameaças diariamente. Em uma ocasião, espalharam gasolina embaixo
da porta da cela, e a ameaçaram com fósforos. As detentas tinham a chave do
cadeado de sua cela e era comum que abrissem e deixassem outras prisioneiras
entrarem enquanto Afiuni tomava banho ou dormia. Uma vez entraram várias para
lhe dar uma surra que deixou uma lesão na sua bexiga e outra no seu peito.
“Mais de uma vez acordei com alguma presa montada em cima de mim, a qualquer
hora na minha cela", disse para o jornalista Francisco Olivares, autor do
livro A Prisioneira do Comandante.
Nesse livro, publicado em 2012, quando Afiuni já
havia sido transferida para prisão domiciliar, foi revelado o estupro que ela
sofreu em julho de 2010, perpetrado por homens identificados com cartões do
Ministério do Interior. Ela sofreu um sangramento que seus advogados
denunciaram com muito barulho na mídia desde setembro de 2010, resultado de um
aborto espontâneo que Afiuni teve na prisão. O juiz de seu caso não permitia os
exames e os cuidados médicos necessários.
“Era necessário fazer escândalo na imprensa para que
tratassem das hemorragias. Meu útero teve que ser retirado. Minha bexiga,
vagina e ânus foram destruídos,” disse Afiuni em um áudio filtrado durante uma
audiência de seu julgamento em 2015.
Necrose, infecção no útero e inflamação da pelve e
órgãos genitais internos foram o diagnóstico oficial que deram para Afiuni
quando ela saiu da prisão para se operar no hospital indicado pela ditadura em
2011. Sua pele também ficou cheia de marcas por queimaduras de cigarro que seus
agressores fizeram na prisão. As marcas psicológicas não aparecem em nenhum
diagnóstico público, mas são evidentes em seu rosto cansado e na propensão a
adoecer facilmente, que confessou a esta repórter durante uma conversa
telefônica em 2016.
Julgamento pela mídia
María Lourdes Afiuni teve que se esforçar para
defender seu caso e se defender das acusações no campo da opinião pública. Ela
mesma, ou por meio de seus advogados ou de seu irmão Nelson Afiuni, que
costumam falar por ela. E é no campo da opinião pública que uma batalha que
nunca teve mérito legal ou judicial foi travada. O caso de Afiuni foi tratado
desde o início por meio de comunicados de imprensa e declarações públicas de
Chávez ou da ex-Promotora Geral do Chavismo Luisa Ortega Díaz, na ausência de um
possível julgamento e procedimentos legais válidos. A própria Afiuni definiu o
crime inexistente no Twitter, “sua janela para o mundo” enquanto esteve detida no
INOF. Na Venezuela, não é incomum que os presos tenham telefones celulares e
contas nas redes sociais. María Lourdes Afiuni teve vários Blackberries (que
eram roubados com frequência), a partir dos quais cumprimentava seus “Wilsons”
— seus crescentes seguidores no Twitter, nomeados como a bola com um rosto
desenhado que acompanhava o personagem de Tom Hanks durante seu cativeiro no
filme 'O Náufrago'; lia as notícias, denunciava o juiz de seu caso e Luisa
Ortega Díaz, e registrava diariamente seu tempo na prisão.
Aprisionada por fazer seu trabalho
“Considerei justo que esse senhor fosse julgado em
liberdade”, disse Afiuni em uma entrevista em sua cela do INOF em novembro de
2010, já com 11 meses de prisão, depois de ser estuprada — doente, sombria, e
exausta. À pergunta do que ela faria se pudesse voltar o tempo, respondeu sem
hesitar e olhando diretamente para a câmera: “Eu faria de novo, não me
arrependo... faria de novo com ele e com qualquer um, como costumei fazer
muitas vezes”, se referindo a conceder uma liberdade condicional a favor de um réu.
“A diferença aqui é que era Eligio Cedeño.”
Maria Lourdes Afiuni era uma autoridade com seu
próprio poder. Um poder que veio da constituição de um país que escolheu ter
entre suas regras do jogo a separação de poderes. Chávez tinha poder como
presidente, mas ela também como operadora do judiciário, um poder estatal
independente e autônomo, pelo menos no papel. Ela o exercitou livremente e foi
a última a fazê-lo. Sua decisão deu para Chávez a oportunidade de transformá-la
em exemplo para outros detentores de poder que nunca ousaram decidir sem antes
perguntar como.
Anos mais tarde, a juíza que ordenou a detenção do
líder opositor Leopoldo López em 2014, Ralenis Tovar, relatou que quando ela
pediu tempo para analisar o caso, um funcionário da Inteligência Militar lhe
perguntou se "ela queria ser a segunda juíza Afiuni.” “Me senti
aterrorizada e decidi como queria o governo. Não queria passar pelo que a juíza
Afiuni sofreu,” disse Tovar para a OEA em 2017, já exilada no Canadá.
Em julho de 2019, a mídia mundial reportou e, em
alguns casos, comemorou o que parecia ser o fim do calvário de Afiuni;
finalmente ela foi libertada. Chegou ao fim uma tortura de quase dez anos que
incluiu um julgamento sem garantias por um crime inexistente, e uma prisão
desumana.