Por THEODIANO
BASTOS
Caro leitor,
leiam com atenção o texto que segue.
Barão de
Itararé: a vida trágica e o humor anárquico de um ícone do jornalismo
'Tudo seria fácil se não fossem as
dificuldades' - “Quem
inventou o trabalho não tinha o que fazer”
"Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos",
do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), por exemplo, virou "Os
vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mais vivos". Já o lema
integralista "Deus, Pátria e Família", de Plínio Salgado (1895-1975),
ganhou nova versão: "Adeus, Pátria e Família!".
Na manhã de 19 de outubro de 1934, o jornalista gaúcho Apparício Torelly
(1895-1971) saía de casa em Copacabana, no número 188 da rua Saint-Romain, rumo
ao Centro, onde trabalhava, quando seu carro, um Chrysler, foi interceptado por
dois veículos. Cinco homens, alguns deles armados, sequestraram o editor do
Jornal do Povo.
"Tem família?", perguntou um dos sequestradores, já com os
carros batendo em retirada. "Isso não vem ao caso", respondeu o
sequestrado. "Nem é da conta dos senhores". "Escreva
despedindo-se", continuou o sujeito. "É um favor que lhe
prestamos". "Dispenso-o", retrucou a vítima.
Quem foi o 1° deputado evangélico do
Brasil, que era contra religião na escola e Deus na Constituição
Logo, Torelly descobriu que os homens que se diziam policiais eram, na
verdade, oficiais da Marinha. Estavam indignados com a publicação de um
folhetim sobre a Revolta da Chibata, liderada pelo marinheiro João Cândido
(1880-1969), o Almirante Negro. Como Torelly se recusou a suspender a
publicação, que denunciava os maus-tratos na Marinha, foi espancado.
Os sequestradores cortaram seus cabelos, furaram os pneus de seu carro e
o abandonaram, quase nu, num local deserto. Na tarde daquele mesmo dia, uma
sexta-feira, depois de voltar para a redação, Torelly pendurou, na porta de sua
sala, uma placa com os dizeres: "Entre sem bater".
"O Barão é daqueles que começam uma partida do zero. É como se
tivesse inventado as regras do jogo", afirma o jornalista Cláudio
Figueiredo, autor da biografia Entre Sem Bater - A vida de Apparício
Torelly - O Barão de Itararé (2012). "Foi muito mais do que
'frasista'. Foi um humorista revolucionário, anárquico, inovador. Colocar o
foco sobre um único aspecto de sua obra seria como julgar Pelé por sua atuação
no Cosmos, já no seu fim de carreira".
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'Tudo seria fácil se não fossem as
dificuldades'
Fernando Apparício de Brinkerhoff Torelly nasceu no Rio Grande,
município a 317 quilômetros de Porto Alegre (RS), no dia 29 de janeiro de 1895.
Seu pai, João da Silva, era brasileiro, e sua mãe, Maria Amélia, uruguaia. O
pequeno Apparício ainda não tinha completado dois anos quando a mãe, então com
18, tirou a própria vida, com um tiro na cabeça. Até hoje, não se sabe ao certo
a razão do suicídio. Especula-se que tenha sido por causa do temperamento
violento do marido.
Órfão de mãe, Apparício foi mandado para um colégio jesuíta em São
Leopoldo. Apesar de sua pouca idade, já esbanjava a irreverência que o tornaria
famoso. Tanto que foi lá, no Colégio Nossa Senhora da Conceição, que criou seu
primeiro jornal de humor, o Capim Seco, totalmente escrito à mão.
Certa vez, o professor de português pediu a Apparício que conjugasse um
verbo qualquer no tempo mais que perfeito. "O burro vergara ao peso da
carga", respondeu o jovem. Nada demais, não fosse Oswaldo Vergara o nome
do tal professor.
Antes de seguir carreira como jornalista, Apparício Torelly tentou a
medicina. Tinha 17 anos quando se matriculou na Escola de Medicina e Farmácia
de Porto Alegre. Ao chegar atrasado a uma aula de anatomia, o professor
Sarmento Leite pegou um fêmur e lhe perguntou: "O senhor conhece este
osso?". Ainda ofegante, o estudante respondeu, estendendo a mão:
"Não, muito prazer!".
Em outra ocasião, durante uma prova oral, o professor, vendo que
Apparício não sabia as respostas, pediu, irônico, a um funcionário da
faculdade: "Me traga um pouco de alfafa, por favor". "E, para
mim, um cafezinho", completou o aluno que, no entanto, não chegou a
concluir o curso e largou a faculdade em 1919.
"A vida do Barão de Itararé é cheia de passagens trágicas. A
começar pelos seus problemas de saúde, como a hemiplegia (paralisia total ou
parcial da metade lateral do corpo)", conta Mary Stela Surdi, mestre em
Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a
dissertação Barão de Itararé - A Linguagem do Humor (1998).
"Desde muito jovem, foi preso e apanhou incontáveis vezes. Mas, sempre
lidou com a perseguição político-ideológica com humor e inteligência".
'Quem inventou o trabalho não tinha o
que fazer'
Com passagem por diversos jornais e revistas, tanto da capital gaúcha
quanto do interior do Estado, Apparício Torelly tentou a sorte no Rio de
Janeiro. Na bagagem, trazia seu primeiro e único livro, Pontas de
Cigarro, de poesia, de 1916, e seu primeiro jornal de humor, O
Chico, que teve tiragem de oito mil exemplares, de 1918.
Aos 30 anos, foi bater à porta de O Globo. "O que quer fazer
aqui?", perguntou o então dono do jornal, Irineu Marinho (1876-1925).
"Qualquer trabalho serve", respondeu Apparício. "De varredor a
diretor do jornal, até porque não vejo muita diferença". Sua primeira
coluna, intitulada Despreso, foi publicada na versão matutina do
jornal, em 10 de agosto de 1925.
Ao longo da carreira, Apparício Torelly teve dois pseudônimos:
Apporelly, uma fusão de "Apparício" e "Torelly", e Barão de
Itararé, o mais famoso deles, em homenagem à batalha que nunca aconteceu, na
divisa entre São Paulo e Paraná, entre as tropas de Washington Luís e de
Getúlio Vargas.
Com a morte de Irineu Marinho em 21 de agosto de 1925, vítima de
infarto, Torelly migrou para as páginas do jornal A Manhã, de Mário Rodrigues
(1885-1930), pai dos jornalistas Mário Filho (1908-1966) e Nelson Rodrigues
(1912-1980). Batizada de Amanhã Tem Mais..., a coluna diária de
Apporelly estreou em 2 de janeiro de 1926 e fez enorme sucesso entre os
leitores.
A piada ofensiva que gerou primeira
censura na internet e mudou a rede para sempre NDÃO BIBLIOTECA NACIONAL
"Eles não perdiam aquela saraivada de frases, versinhos e
trocadilhos com nomes de políticos", afirma o jornalista e escritor Ruy
Castro em O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (1992).
"Algumas das melhores frases já tinham sido inventadas por Bernard Shaw,
Mark Twain ou Oscar Wilde, a quem Apporelly esquecia de citar. Outras, às vezes
muito engraçadas, eram dele mesmo".
Entre outros trocadilhos
famosos, Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), líder da Revolução de 1930,
virou "Getúlio Dor Neles Vargas" e Filinto Müller (1900-1973), o
torturador do Estado Novo, "Filinto Mula". Sobre Getúlio, aliás,
disse, certa ocasião: "Sabe como se chama nosso caro presidente? Gravata
Preta. Adapta-se a qualquer roupa e a qualquer regime".
Além de fazer trocadilhos com
nomes de políticos, Torelly se especializou em criar paródias para frases
famosas.
Apenas quatro meses depois de começar a trabalhar no jornal A Manhã,
Torelly decidiu fundar seu próprio jornal: A Manha. "O jornal de humor que
ele criou e manteve com ímpeto quixotesco sobreviveu de 1926 a 1959",
explica o jornalista Rodrigo Jacobus, Mestre em Comunicação e Informação pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com a tese Um Nobre
Bufão no Reino da Grande Imprensa (2010). "Ao longo desse
período, pontuou com seu humor alguns dos maiores acontecimentos do século 20,
como a Revolução de 30, o Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial...".
Em 10 de outubro de 1929, A Manha passou a circular como suplemento do
jornal Diário da Noite, do jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968), o
"Chatô". A sociedade, porém, durou pouco: cinco meses.
Além da edição diária, Torelly publicou, ainda, três números de
Almanhaque, ou seja, o almanaque do jornal A Manha. Um número saiu em 1949 e
dois, em 1955. Todos traziam jogos, piadas e adivinhações. Seu principal
parceiro na nova empreitada foi o chargista e ilustrador paraguaio Andrés
Guevara (1904-1963).
SAIBA MAIS EM: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59689669