diz
sociólogo italiano Domenico De Masi
Criador do conceito de 'ócio criativo' defende a redução das horas de
trabalho e a renda básica universal
O crescimento econômico sem emprego — a
capacidade de produzir cada vez mais bens e serviços com cada vez menos
trabalho humano — é uma das tendências do mundo do trabalho evidenciadas pela
pandemia que vieram para ficar, avalia o sociólogo italiano Domenico De Masi.
Criador no início dos anos 2000 do
conceito de "ócio criativo" — a ideia de que o justo equilíbrio entre
trabalho, estudo e descanso favorece a capacidade inventiva —, De Masi opina
que a única maneira de evitar que o desemprego aumente de forma incontrolável é
reduzir as horas de trabalho à medida em que a tecnologia avança.
O sociólogo também defende o Estado de
bem-estar social e políticas de renda básica universal, num mundo onde o
emprego é cada vez mais instável.
"É cada vez mais frequente uma
experiência de trabalho composta por múltiplos empregos que se sucedem e se
entrelaçam, intercalados com períodos de desemprego; empregos temporários,
"gig economy" [economia dos aplicativos], contratos
periódicos", enumera De Masi.
"Isso induz todos os trabalhadores
a um sentimento de precariedade", diz o sociólogo.
"Uma vez que o tempo para
encontrar trabalho, ou reencontrá-lo, será mais longo, nos interstícios, será
necessário que todos tenham a garantia de uma sobrevivência digna, assegurada
através de uma renda básica de cidadania e, posteriormente, de uma renda
universal", defende.
O BRASIL ESTÁ SOZINHO CONSIGO MESMO
"Depois de ter copiado a Europa
por 450 anos e os Estados Unidos por mais de 50 anos, agora que ambos os
mitos-modelos estão em profunda crise, o gigante latino-americano está sozinho
consigo mesmo, enfrentando seu futuro", diz De Masi, sobre o Brasil.
"Esta é uma situação inquietante,
que pode se dissolver em confusão ou pode gerar o modelo sem precedentes que o
mundo precisa. Acredito firmemente nessa segunda hipótese."
Confira os principais trechos da
entrevista concedida por Domenico De Masi à BBC News Brasil.
O sociólogo participou em novembro do
evento Seminários Cultura e Democracia, organizado pelo Instituto Cultura e
Democracia, Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo. A tradução
do italiano é de Marcella Ferr.
BBC News Brasil - Quais são, na sua
avaliação, as mudanças mais importantes no mercado de trabalho causadas pela
pandemia?
Domenico De Masi - Após a pandemia, e por causa dela, o mercado de
trabalho sofrerá mudanças significativas. O lockdown prolongado tornou
necessário fechar muitos negócios e, portanto, tem causado uma redução
acentuada em suas atividades e a falência das empresas mais frágeis, com a
consequente demissão de toda ou parte de sua força de trabalho.
Enquanto isso, as empresas que tinham
capital para investir adotaram novas tecnologias, substituindo o trabalho
humano. Por fim, a disseminação do trabalho remoto, permitindo que milhões de
pessoas trabalhassem em casa, possibilitou reduzir o uso de veículos, combustíveis
e refeitórios de empresa etc., causando desemprego nesses setores.
Enquanto isso, a grande transformação
do trabalho que começou há 200 anos continuou.
Os operários, que no início do século
20 representavam a grande maioria da população ativa em todo o mundo
industrializado, agora, substituídos por máquinas eletromecânicas e robôs,
foram reduzidos a apenas um terço; outro terço é composto por funcionários, por
sua vez, substituídos por computadores; outro terço, por fim, é representado
por trabalhadores criativos: executivos, gerentes, dirigentes, empresários,
profissionais, cientistas, artistas.
O que está claro para nós também hoje é
que a pandemia ama bilionários.
Em 2020, de acordo com o Índice de
Bilionários da Bloomberg, a fortuna total dos 500 mais ricos do mundo cresceu
31% em relação ao ano anterior.
Os operários, que no início do século
20 representavam grande parcela da população ativa no mundo industrializado,
foram substituídos por máquinas eletromecânicas e robôs, observa De Masi
BBC News Brasil - Quais dessas mudanças
devem se tornar permanentes?
De Masi - Nos últimos anos, a oferta de mão de obra
cresceu porque a população mundial aumentou, mas a demanda diminuiu devido ao
progresso tecnológico.
O trabalho que as máquinas nunca
poderão tirar do homem é o de natureza cognitiva e criativa.
É fácil prever que, para os
responsáveis pelas tarefas executivas, sejam eles trabalhadores manuais ou
administrativos, as horas de trabalho semanais serão progressivamente
reduzidas, enquanto seu tempo livre aumentará.
Graças ao trabalho remoto, o trabalho
vai se desconstruindo cada vez mais no tempo e no espaço; para os trabalhadores
criativos, o limite entre o trabalho e o não trabalho será cada vez mais tênue,
dando vida àquela ociosidade criativa em que estudo, trabalho e lazer
coincidem.
O trabalho remoto representa um
primeiro passo na revolução histórica que está mudando nossa vida profissional
e familiar: uma revolução que continuará mesmo após a pandemia e que ninguém
poderá impedir.
Em dezenas de organizações, a
experiência do trabalho remoto realizada forçosamente nos últimos meses tem
sido acompanhada por pesquisas sociológicas para monitorar seus efeitos.
A maioria dos chefes entrevistados diz
que a produtividade geral de seus funcionários aumentou, e a maioria dos
trabalhadores diz estar disposta a continuar trabalhando remotamente mesmo após
a pandemia.
Quanto ao comércio eletrônico, durante
a pandemia, ele cresceu exponencialmente.
Antes do início da pandemia, a Amazon
valia US$ 916,2 bilhões; após um ano, valia US$ 1,6 trilhão. Em 2020, Jeff
Bezos, dono da Amazon e o homem mais rico do mundo, faturou US$ 8,99 bilhões
por mês. Sua fortuna pessoal passou de US$ 115 bilhões em 2019 para US$ 196
bilhões em 2020.
Se distribuísse apenas uma parte desse
valor, dando um bônus de US$ 10 mil para cada um de seus 840 mil funcionários
no mundo, talvez ele nem percebesse.
AFPJeff Bezos, dono da Amazon e homem mais rico do
mundo, viu sua fortuna pessoal passar de US$ 115 bilhões em 2019 para US$ 196
bilhões em 2020, com o avanço do comércio eletrônico na pandemia
BBC News Brasil - Qual será o papel da
renda básica universal neste novo mundo?
De Masi - Durante dois séculos, a sociedade industrial
se concentrou na segurança: o jovem de 18 anos que entrava numa empresa sabia
que permaneceria lá até a aposentadoria e sabia de antemão os anos de aumento
do seu salário e a progressão de sua carreira.
Com o triunfo da economia neoliberal, a
partir dos anos 1980, sob [o presidente americano Ronald] Reagan e [a
primeira-ministra britânica Margareth] Thatcher, o fenômeno da precarização se
acentuou e os riscos aumentaram.
Para quem trabalha, aumentou a
insegurança, a duração e intensidade do trabalho, a flexibilidade, a
multiatividade, a informalidade e a descontinuidade. Para quem não trabalha,
aumentou a precariedade e a miséria, a desorientação e a depressão.
Costuma-se dizer que, para erradicar a pobreza,
é necessário crescimento econômico.
Primeiro Reagan e depois Bush pai [o
presidente americano George H. W. Bush] implementaram as ideias neoliberais dos
economistas [Simon] Kuznets e [Arthur] Laffer de que os impostos dos ricos
deveriam ser reduzidos para incentivá-los a investir e, ao mesmo tempo,
desencorajá-los de sonegar impostos. Dessa forma, essa riqueza crescente
beneficiaria os pobres, aliviando sua condição.
Em vez disso, a história mostra que o
número de pobres aumenta, mesmo quando a riqueza cresce, porque sabemos como
produzir riqueza, mas não sabemos, ou não queremos, distribuí-la.
Portanto, se queremos evitar que a
pobreza se traduza em conflito e que o conflito transborde para a violência,
devemos recorrer ao Estado de bem-estar social.
BRASIL COMO EXEMPLO PARA O MUNDO
BBC News Brasil - Em 2013, em seu
livro O Futuro Chegou, o senhor citava o Brasil como um exemplo
para o resto do mundo. Agora, o Brasil é considerado um contraexemplo, por suas
ações durante a pandemia e na questão ambiental. Onde as coisas deram errado?
De Masi - Como disse Tom Jobim: "O Brasil não é
para amadores". Apenas amadores podem pensar que o regime de Bolsonaro
será duradouro e que o modelo cultural brasileiro pode ser alterado em quatro
anos.
Esse modelo, como observei no
livro O Futuro Chegou, e como explicaram os grandes antropólogos
brasileiros, é feito de mestiçagem, sincretismo, alegria, sensualidade,
simpatia, hospitalidade, solidariedade, esperança e beleza.
É, portanto, um modelo de humanismo
corporal, precioso para toda a humanidade.
É um imenso patrimônio de livros,
pesquisas, reportagens, monumentos, pinturas, filmes, fotografias, além de
lugares e objetos, que cobrem o período de muitos séculos densos de obras,
descobertas e invenções.
O brasileiro é informal, trabalha em
mangas de camisa e sabe atuar em grupos, é fluido em seus processos de tomada
de decisão, não tem preconceitos ideológicos, aprende fazendo, tende a combinar
trabalho com diversão, presta serviços de forma atenciosa, afável, afetuosa.
BBC News Brasil - É possível para o
Brasil "reinventar seu futuro"?
De Masi - Não só é possível, é certo! Pessoalmente,
acredito que, assim que esse infeliz parêntese do governo Bolsonaro acabar, o
modelo de vida e sociedade historicamente elaborado pelo Brasil retomará toda
sua vitalidade.
Seu sucesso no mundo, é claro,
dependerá da capacidade dos brasileiros de se mobilizar, organizar, agir com
mais racionalidade sem perder a simpatia, modernizar sem comprometer a
sustentabilidade, de ser, talvez, menos improvisadores, sem perder a
criatividade.
Depois de ter copiado a Europa por 450
anos e os Estados Unidos por mais de 50 anos, agora que ambos os mitos-modelos
estão em profunda crise, o gigante latino-americano está sozinho consigo mesmo,
enfrentando seu futuro.
Esta é uma situação inquietante, que
pode se dissolver em confusão ou pode gerar o modelo sem precedentes que o
mundo precisa.
Acredito firmemente que essa segunda
hipótese se realizará e que o Brasil retomará sua jornada de grande democracia,
alimentada pelo humanismo e pela criatividade.
Leia mais em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59528264