domingo, 11 de janeiro de 2015

PT EM DECOMPOSIÇÃO



Josias de Souza, 11/01/2015  

Pegou mal. Não foi ninguém da imprensa golpista nem da oposição retrógrada. Foi Marta Suplicy quem disse cobras e lagartos de Dilma, do governo e do PT. Foi Marta quem, numa entrevista à repórter Eliane Cantanhêde, desancou companheiros como Aloizio ‘Inimigo’ Mercadante e Rui ‘Traidor’ Falcão. Foi Marta quem declarou ter participado de conversas nas quais o próprio Lula, “extremamente incomodado” com Dilma, a “decepava”. Foi Marta quem sentenciou: “Ou o PT muda ou acaba”.
Ninguém deseja fazer intriga, mas Marta chegou ao ponto de elogiar a nova equipe econômica liderada pelo tucano ortodoxo Joaquim Levy: “É experiente, qualificada”. Noutros tempos, o PT chamava pra briga. Sobretudo porque Marta condicionou o sucesso do governo na economia à disposição de Dilma de não confundir Levy com Guido Mantega: “Se não respeitar, vai ser desastroso.”
Pessimista, Marta acha que Dilma não conseguirá enxergar no espelho as culpas da antecessora: “Agora, é preciso ter humildade e a forma de reconhecer os erros a esta altura é deixar a equipe [econômica] trabalhar. Mas ela não reconheceu na campanha, não reconheceu no discurso de posse. Como que ela pode fazer agora?” Mais um pouco e a companheira adere ao coro do “estelionato eleitoral”.
Para o PT, só há dois tipos de seres humanos: o petista e o idiota. Vem daí a convicção do petismo de que todas as críticas ao governo e ao partido são suspeitas. Mesmo as opiniões negativas de aparência mais sensata têm essa falha de origem: são de idiotas. De repente, surge um terceiro tipo de ser humano: Marta Suplicy —uma quase ex-petista transitando da militância dogmática, movida à base de fé e revelações divinas, para a idiotia plena, que convive com a dúvida e a crítica.
Marta já não consegue percorrer o noticiário sem fazer cara de nojo: “Cada vez que abro um jornal, mais fico estarrecida com os desmandos. É esse o partido que ajudei a criar?”. Ela reconhece que, no ano passado, fez muita força para que Lula fosse o candidato do PT à Presidência. Acha que ele chegou a flertar com a ideia. Só não brigou com Dilma, por achar que ambos perderiam com a discórdia.
Perguntou-se a Marta se Lula pode ajudar Dilma caso o governo volte a tropeçar na economia. E ela: “Você não está entendendo. O Lula está fora, está totalmente fora.” Acrescentou: “O Mercadante é inimigo, o Rui traiu o partido e o projeto do PT, e o partido se acovardou ao recusar um debate sobre quem era melhor para o país, mesmo sabendo das limitações da Dilma. Já no primeiro dia, vimos um ministério cujo critério foi a exclusão de todos que eram próximos do Lula. O Gilberto Carvalho é o mais óbvio.”
E quanto a 2018? “Mercadante mente quando diz que Lula será o candidato. Ele é candidatíssimo e está operando nessa direção desde a campanha, quando houve um complô dele com Rui e João Santana para barrar Lula.”
Quando a situação parecia caminhar para a anormalidade de sempre —o pastor George Hilton cuidando do Esporte; o filho do Jáder na Pesca; o Levy afiando a tesoura; as ações da Petrobras negociadas na bacia das almas; os empreiteiros em cana, o PMDB às turras com o Planalto; o Imperador retirado do esquife na novela das nove…— quando tudo voltava para a anormalidade de praxe, vem a Marta Suplicy torcer o nariz da Dilma e cuspir no prato do PT.
Espantosa fase essa que o PT atravessa. O absurdo adquiriu para o partido uma doce, uma persuasiva natudalidade. Os petistas se espantam cada vez menos. Se o banquete inclui ensopadinho de dinheiro sujo à moda de Valério, nenhum petista fará a concessão de uma surpresa. Adicionaram-se as propinas do petrolão no cardápio? Pois que seja propina, e com abóbora.
Ao desenhar um quadro devastador da legenda, Marta Suplicy apenas reintroduz nos seus hábitos o ponto de exclamação. Faz isso com um atraso hediondo. Marta demorou tanto para acordar que acabou perdendo o essencial. “Ou o PT muda ou acaba”, disse ela. Ora, o PT já acabou faz tempo. Só Marta não notou que isso que está aí na praça é um ex-PT bem mequetrefe.
Aquele partido casto e imaculado da década de 80 morreu. Saiu da vida para cair na esbórnia. A julgar pelo relato de Marta, o cadáver encontra-se em avançado estágio de decomposição. O pior é que a covocação de Joaquim Levy para fazer o inventário mostra que a velha legenda morreu endividada. E não foi para o céu.

sábado, 10 de janeiro de 2015

A PETROBRAS É DELES



A PETROBRAS É DELES
Engenheiro Antonio Carlos Lacerda, Belo Horizonte.

Independente de crenças, dogmas e partidos, cabe a cada brasileiro avaliar a atual situação dos escândalos de corrupção promovida pelos políticos em nosso pais.

Não se pode concordar com escaramuças para se desviar a atenção do cidadão. O assunto é demasiadamente sério para se entrar na manipulada briguinha PT X PSDB ou de aceitar a continuidade do "nós e eles" praticado na campanha eleitoral. Não se pode instigar a divisão da nação de brasileiros.

Nós brasileiros precisamos ficar atentos para não entrar em nenhuma manipulação política para nos dividir, para enfraquecer o nosso poder.  Precisamos que, efetivamente, o pais seja passado a limpo, não em promessas vãs e discursos de palavras fáceis, mas em ações verdadeiras judiciais, policiais e administrativas. 

A corrupção é danosa porque mata moralmente o cidadão, quando os seus principios são corrompidos, e mata efetivamente o cidadão quando são desviados, para o bolso de poucos, vultosos recursos que deveriam atender às necessidades básicas do cidadão.

Antonio Carlos Lacerda.

MIGUEL REALE JÚNIOR*


O petróleo era nosso, agora a Petrobrás é deles. Diante do volume de recursos desviados passou-se a usar a expressão lacerdista mar de lama, adjetivação dada pela UDN aos fatos ocorridos no final do governo Vargas, em 1953-54. Quais foram, há 60 anos, os acontecimentos que geraram expressão tão forte?
Na biografia de Getúlio Vargas (terceiro volume) Lira Neto conta que as acusações se prendiam à importação de dois veículos Rolls Royce para a Presidência da República, livre de imposto de importação. A importadora em vez de dois veículos importou quatro, livres de impostos, destinando dois a particulares - um à importadora Santa Teresinha, da família Maluf, e outro ao magnata Peixoto de Castro. Outras irregularidades denunciadas diziam respeito à concessão de loterias federais e à compra de locomotivas para a Central do Brasil sem licitação. A oposição dizia-se estarrecida, comenta o biógrafo, e daí apodar-se o governo de mar de lama.
Outro presidente acusado de corrupção, mas afastado do cargo por impeachment foi Fernando Collor. Márcio Thomaz Bastos, recém-falecido, e eu fomos chamados pela CPI do PC Farias para ajudar na elaboração do relatório final. Detidamente analisei as provas, especialmente as relações entre a Casa da Dinda, residência do presidente, e PC Farias. Constatei, então, ter PC Farias irrigado, com parte do dinheiro arrecadado com exigências praticadas em conjunto com autoridades federais, contas fantasmas movimentadas pela secretária particular de Collor, por via das quais se pagavam gastos da Casa da Dinda.
Pouco depois, José Carlos Dias telefonou-me convidando para reunião em sua casa, na qual se discutiria o impeachment de Collor. Estavam presentes o anfitrião, Dalmo Dallari, René Dotti, Flávio Bierrenbach e Fábio Comparato. René foi incumbido de elaborar um plano geral. Coube, posteriormente, a Comparato escrever a parte relativa à quebra do decoro e a mim, que tinha cópia dos elementos essenciais da CPI do PC Farias, redigir a acusação acerca do fato de o presidente ter deixado de zelar pela probidade da administração pública, sem apurar a responsabilidade de subordinados e recebendo benefícios na conta gerenciada por sua secretária.
O grupo de advogados teve mais duas reuniões para exame do texto, em minha casa e depois na casa de Márcio Thomaz Bastos, com a presença de Evandro Lins e Silva, na qual se aprovou a versão final, submetida aos presidentes da OAB-Conselho Federal e da ABI, subscritores iniciais do pedido de impeachment, fundado no descumprimento do dever constitucional de zelar pela probidade administrativa.
Em 2005 surgiu o mensalão, comprometendo a estrutura da República pela compra de votos de inúmeros parlamentares de diversos partidos às vésperas de votações importantes com recursos obtidos com a contratação falsa de publicidade e depois entrega de envelopes recheados em hotéis de Brasília, envolvendo ministro da Casa Civil e presidentes de partidos políticos na cooptação da vontade parlamentar. O presidente Lula de início se disse traído, depois vem tergiversando. A fragilidade da oposição permitiu que o presidente passasse incólume.
Mas são do seu governo as falcatruas na Petrobrás, sendo então a atual presidente, primeiramente, ministra de Minas e Energia e depois chefe da Casa Civil, mas sempre presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, conselho ao qual, pelo estatuto, coube a nomeação dos diretores, esses mesmos agora presos e acusados de locupletamento de milhões.
Denunciado o mensalão, que garantia a "fidelidade" da base governista, instituiu-se o petrolão, nova fonte de recursos a não serem contabilizados. O Tribunal de Contas da União (TCU) apontou em 2007 haver graves distorções em obras da Petrobrás, recomendando a paralisação da sempre lembrada refinaria de Abreu e Lima. O Congresso não acompanhou a recomendação do TCU e o Executivo nada fez. Em 2009 novamente o TCU recomendou e o Congresso acolheu, na Lei Orçamentária, a suspensão das obras da refinaria.
Alertadas a Presidência e a ministra Dilma, presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, resolveu Lula vetar o artigo do projeto de lei orçamentária que suspendia a obra suspeita, com argumento do prejuízo social dessa paralisação, dando livre curso às irregularidades. Limitou-se a Presidência a recomendar à Corregedoria a apuração de eventuais desvios, sem se dar o devido relevo ao TCU e ao próprio Congresso, tanto que a Corregedoria, displicentemente, três anos depois, em 2012, afirmou não ter sido possível verificar nenhuma irregularidade por falta de conhecimento dos parâmetros utilizados pelo TCU na constatação dos desvios.
Hoje está estampado em cores gritantes o tamanho do desmando, a fonte contínua de montanhas de dinheiro desviado em obras e aquisições pelas diretorias da Petrobrás na gestão de Dilma e Lula, a ponto de um só gerente, agora em delação premiada, comprometer-se a devolver R$ 250 milhões de que se apropriara.
Segundo consta, havia um diretor responsável por gerir as vantagens ilícitas de cada um dos três partidos da base: PT, PMDB e PP. Assim, os parlamentares da base, formada por esses partidos, continuavam "fiéis" ao governo, que fechava os olhos aos desmandos de toda ordem na estatal, antes considerada a pérola da República, mas que ora amarga prejuízos e descrédito incomensuráveis no Brasil e no exterior. A peso de ouro o governo manteve uma maioria parlamentar sempre pronta a fazer naufragar CPIs no Congresso.
Cabe ao leitor comparar o sucedido à época de Getúlio e com Collor em 1992 ao que ocorre hoje para avaliar o que vem a ser um mar de lama, se há ou não omissão dolosa ou culposa no devido zelo da probidade administrativa e na apuração de responsabilidade de subordinados.

*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA.

AMOR, O FILME



AMOR, O FILME                  Theodiano Bastos

“Quem de jovem não morre, de velho não escapa” Autor desconhecido

Tem mais de um ano que eu (78 anos) e minha esposa (76 anos) que assistimos a esse filme em Vitória/ES e fiquei tão chocado com o final do filme que fui embora antes de seu término. Vi-me retratado no filme e passei a ter medo de enfrentar o mesmo drama no final da vida, embora não tenha medo de morrer. 
Amor (Amour) é um drama (Áustria/França/Alemanha) e Michael Haneke é um diretor conhecido pela crueza de seus filmes – não apenas pelo estilo direto das histórias, mas também pelo incômodo que por vezes causa no espectador. Desta forma, o anúncio de que faria um filme intimista sobre o amor causou surpresa, afinal de contas um romance tradicional está bem longe do perfil do cinema do diretor. Entretanto, ao assistir o longa-metragem fica bem nítido o quanto Amor, o filme, se enquadra dentro da filmografia de Haneke.
Sinopse e detalhes
Georges e Anne são um casal de músicos aposentados. Quando Anne tem um problema de saúde, o laço de amor entre os dois será severamente testado.


Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) são um casal de aposentados, que costumava dar aulas de música. Eles têm uma filha musicista que vive com a família em um país estrangeiro e só aparece para tentar dar um golpe na mãe e se apropriar dos bens. Certo dia, Anne sofre um derrame e fica com um lado do corpo paralisado e aí aparecem os sintomas do temido Mal de Alzheimer. O casal de idosos passa por graves obstáculos, que colocarão o seu amor em teste. Sem recursos para custear cuidadoras, ele mesmo tem de cuidar da esposa que passa a usar fraldas fica totalmente dependente.
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“Depois de arrombarem a porta de um antigo apartamento, policiais franceses invadem o local. Cobrindo o nariz para evitar o mau cheiro, um deles abre as janelas enquanto os demais se ocupam em descobrir o que há em um aposento cuja entrada foi vedada com fita adesiva – e é ali que encontram o cadáver arroxeado de uma mulher idosa que, arrumada com cuidado sobre a cama, tem o corpo cercado por pétalas coloridas. Apenas três ou quatro minutos se passaram desde o início de Amor e o diretor austríaco Michael Haneke já ilustra, com sua brutalidade habitual, uma cena aparentemente cruel que, no detalhe das flores, revela a natureza por trás daquele ato: o sentimento que intitula a narrativa.
Filme relativamente doce para os padrões de um cineasta acostumado a torturar seu público e a encarar a humanidade com imenso ceticismo, Amor representa uma experiência difícil por nos lembrar o tempo inteiro de que todos dividiremos o mesmo desfecho: ricos ou pobres, conservadores ou liberais, ocidentais ou orientais, cessaremos de existir e nos converteremos em carne inanimada, em cadáveres de olhos apagados e esfíncteres abertos, cheirando a excremento e, em pouco tempo, a podridão sem em nada lembrarmos as figuras repletas de sonhos, mágoas, memórias, humores e amores que expuséramos ao mundo ao longo dos anos. Aliás, neste aspecto, Haneke já demonstra inteligência ao escalar os veteranos Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva nos papéis de Georges e Anne, casal que acompanharemos ao longo das duas horas seguintes – afinal, como representar melhor a implacável e inexorável passagem do tempo do que trazer, agora velhos e frágeis, os atores que víramos belos e cheios de vida em obras como Um Homem, Uma Mulher e Hiroshima Meu Amor?
Adotando um olhar objetivo e repleto de realismo através de sua estratégia habitual de rodar longos planos com uma câmera estática que só quebra esta imobilidade para acompanhar lateralmente os personagens em panorâmicas e travellings discretos, Michael Haneke nos apresenta a Georges e Anne em um período tranquilo de sua velhice: habituados e confortáveis com a presença um do outro após décadas de casamento, eles levam uma vida social ativa e parecem razoavelmente felizes em seu cotidiano tranquilo – até que o tempo os alcança e, cada vez mais adoentada, Anne se vê dependente do marido para tudo, o que leva a imensos sacrifícios por parte dos dois enquanto o apartamento vai se transformando em uma enfermaria triste à medida que passa a abrigar cadeira de rodas, cama de hospital e outros apetrechos médicos necessários para conduzir a mulher por mais um dia.
Remetendo ao doloroso drama islandês Vulcão, que demolia o espectador através dos ininterruptos gemidos de sofrimento de uma senhora inválida, Amor nos oferece contexto para a vida de seu casal principal através de pequenos interlúdios que servem como recortes de sua trajetória, desde os planos que revelam os vários aposentos que, vazios, expõem um mundo de histórias em sua aparência gasta, até o instante em que Anne folheia um álbum de fotografias que parecem ilustrar sua existência em pequenos saltos. Trata-se de uma abordagem evocativa, claro, mas seca como o restante da narrativa, já que Haneke não é diretor de se entregar ao melodrama – e, assim, as indignidades que passam a se acumular no cotidiano de Anne (como descobrir que urinou na cama e passar a usar fraldas que devem ser trocadas pelo marido) são enfocadas de forma direta, como simples fatos da vida. Além disso, o cineasta também explora pequenos e breves momentos de leveza na decadência da mulher, como na cena em que esta brinca com sua cadeira de rodas elétrica. O mais admirável em Amor, contudo, é o respeito que o diretor demonstra para com seus personagens – e mesmo que exiba passagens difíceis do dia a dia do casal, Haneke parece respeitar certos limites que acabam sendo expostos por uma fala dita por Georges: “Nada disso merece ser mostrado ou exibido” – uma postura diametralmente oposta àquela demonstrada, por exemplo, no desfecho do recente Lincoln, quando Spielberg simplesmente não resiste explorar a morte do presidente para arrancar algumas lágrimas adicionais.
Descartando qualquer trilha sonora que pudesse conferir drama artificial à narrativa, o diretor emprega, em vez disso, os sons diegéticos de maneira brilhante não só para criar determinadas atmosferas como também para oferecer informações importantes – e a torneira que Georges deixa aberta em certo momento, por exemplo, não só confere tensão à cena como, pouco depois, ao ser fechada fora de campo, nos alerta para o despertar de Anne. Da mesma forma, logo no início da projeção Haneke faz seu jogo habitual de obrigar o espectador a se encarar como tal ao incluir um longo plano no qual vemos uma plateia lotada que se prepara para assistir à performance de um músico – e como o cineasta se recusa a posicionar Georges e Anne no ponto mais forte do quadro, somos obrigados a percorrer os rostos de dezenas de figurantes em busca de alguma informação que possa ser relevante. Com isso, Haneke não apenas salienta o número de histórias possíveis presentes naquele ambiente como ainda força nossa identificação com o casal, que se encontra na tela como um reflexo do próprio espectador no meio de uma plateia.
Mas são as performances de Trintignant e Riva que acabam por conferir força descomunal ao filme: grisalhos, trágicos e vulneráveis com suas peles flácidas e repletas de manchas senis, eles incorporam com talento um casal que traz décadas de memórias compartilhadas – e parte da dedicação de Georges à esposa vem não só do amor e do carinho que sente por esta, mas da constatação de que boa parte do que ele próprio viveu reside agora apenas nas lembranças de Anne, morrendo com esta e destruindo boa parte de sua própria história. Além disso, vê-lo abraçado à mulher inválida enquanto a ajuda a percorrer pequenas distâncias em seu apartamento é um gesto que, por si só, carrega um mundo de significados – desde o mais simples (um homem que ajuda a esposa a se movimentar) até outros que evocam um passado de abraços apaixonados, de danças e carinhos.
Assim, não deixa de ser assustador pensar que, de certa forma, Anne é uma felizarda por ter tido a oportunidade de construir memórias e envelhecer – e que as indignidades de seu terceiro ato de vida são uma nota de rodapé sob o longo texto que representa sua jornada. E que, neste sentido, atravessamos nossas existências buscando estabelecer laços e despertar amores que nos tornem dignos de, ao fim, termos nossos corpos enfeitados com pétalas coloridas por aqueles que deixamos para trás.”
Fonte: http://www.adorocinema.com/