Raul Jungmann foi ministro da Defesa:
Sr.
Presidente e Srs. Ministros do Supremo Tribunal Federal, Srs. Ministros, Dirijo-me
a essa egrégia Corte na dupla condição de ex-ministro da Defesa Nacional e da
Segurança Pública, com o objetivo de alertar para a gravidade do nefasto
processo de armamento da população, em curso no Brasil.
É iminente o risco de gravíssima lesão ao sistema democrático em
nosso país com a liberação, pela Presidência da República, do acesso
massificado dos cidadãos a armas de fogo, inclusive as de uso restrito, para
fins de “assegurar a defesa da liberdade dos brasileiros” (sic), sobre a qual
inexistem quaisquer ameaças, reais ou imaginárias. O tema do armamento dos
cidadãos, até aqui, foi um assunto limitado à esfera da segurança pública em
debate que se dava entre os que defendiam seus benefícios para a segurança
pessoal e os que, como nós, e com base em ampla literatura técnica, afirmávamos
o contrário – seus malefícios e riscos às vidas de todos. Ao transpor o tema da
segurança pública para a política, o Executivo incide em erro ameaçador, com
efeitos sobre a paz e a integridade da Nação, pelos motivos a seguir. Em
primeiro lugar, viola um dos principais fundamentos do Estado, qualquer Estado,
que é o de deter o monopólio da violência legal em todo o território sobre a
sua tutela, alicerce da ordem pública e jurídica e da soberania do país. Em
segundo lugar, pelo fato de que as Forças Armadas são a última ratio sobre a
qual repousa a integridade do Estado nacional. O armamento da população
proposto – e já em andamento -, atenta frontalmente contra o seu papel
constitucional, e é incontornável que façamos a defesa das nossas FFAA. Em terceiro, é inafastável a
constatação de que o armamento da cidadania para “a defesa da liberdade” evoca
o terrível flagelo da guerra civil, e do massacre de brasileiros por
brasileiros, pois não se vislumbra outra motivação ou propósito para tão
nefasto projeto.
Ao longo da história, o armamento da população serviu a interesses
de ditaduras, golpes de estado, massacre e eliminação de raças e etnias,
separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo
alemão.
No plano da segurança pública, mais armas invariavelmente movem
para cima as estatísticas de homicídios, feminicídios, sequestros, impulsionam
o crime organizado e as milícias, estando sempre associadas ao tráfico de
drogas.
Por essas razões, Estados democráticos aprovam regulamentos
rígidos para a sua concessão aos cidadãos, seja para a posse e, mais ainda,
para o porte. Dramaticamente, Srs. Ministros, estamos indo em sentido contrário
à vida, bem maior tutelado pela lei e nossa Constituição, da qual sois os
guardiães derradeiros. Em 2018, pela primeira vez em muitos anos, revertemos a
curva das mortes violentas, por meio de um amplo esforço que culminou com a lei
do Susp – Sistema Único de Segurança Pública -, que permanece inexplicavelmente
inoperante. Hoje, lamentavelmente, as mortes violentas voltaram a subir em no
corrente ano e no ano anterior, enquanto explodem os registros de novas armas
em mãos do público: 90% a mais em 2020, relativamente a 2019, o maior
crescimento de toda série histórica, segundo dados da Polícia
Federal. Com 11 milhões de jovens fora da escola e do trabalho, os “sem-sem”,
vulneráveis à cooptação pelo crime organizado, a terceira população carcerária
do planeta – 862.000 apenados, segundo o CNJ, e um sistema prisional controlado
por facções criminosas, polícias carentes de recursos, de meios e de ampla
reforma, mais armas em nada resolvem o nosso problema de violência endêmica – antes
a agravam e nos tornam a todos reféns. Está, portanto, em vossas mãos, em
grande parte, impedir que o pior nos aconteça. Por isso apelamos para a urgente
intervenção desta egrégia Corte, visando conjurar a ameaça que paira sobre a
Nação, a Democracia, a paz e a vida.
Lembremo-nos dos recentes fatos ocorridos nos EUA, quando a sede
do Capitólio, o congresso nacional americano, foi violada por vândalos da
democracia. Nossas eleições estão aí, em 2022. E pouco tempo nos resta para
conjurar o inominável presságio. Raul Jungmann foi ministro da Defesa Leia mais em: https://veja.abril.com.br/blog/noblat/carta-aberta-ao-supremo-tribunal-federal-por-raul-jungmann/