A professora de sociologia
franco-israelense afirma em seu último ensaio que o sexo cria novas
desigualdades sociais
EL PAÍS, ÁLEX VICENTE, 02/01/21
A socióloga franco-israelense Eva Illouz (Fez,
59 anos) especializou-se no estudo das consequências do capitalismo nas nossas
relações amorosas. Professora da Escola de Estudos Superiores em Ciências
Sociais (EHESS) de Paris ―onde ministra seminários bem concorridos―, publicou
dois novos ensaios: O Fim do Amor, onde se aprofunda em seu
diagnóstico do modelo pós-romântico em que entramos, e O Capital Sexual
na Modernidade Tardia, coescrito com Dana Kaplan, em que descreve como a
aparência física e a atratividade sexual tornaram-se vetores decisivos no
modelo econômico atual.
Pergunta. Como define o capital
sexual e emocional, e como quantificá-lo?
Resposta. Continuando com a expansão do conceito de
capital que o sociólogo Pierre Bourdieu propôs
há mais de 30 anos, procuro entender como um indivíduo tira proveito econômico
de sua pessoa no contexto do capitalismo, como usa sua aparência e seus
atributos emocionais para se integrar e ascender no mundo corporativo. O que
detecto é que a sexualidade desempenha um papel cada vez mais importante na
valorização da pessoa nesse contexto. Em especial para as mulheres...
P. Você diz que se tornou “a base
normativa” do sistema econômico. A beleza prevalece sobre as aptidões?
R. É
algo que já existia, mas se generalizou. A capacidade de explorar a beleza já
existia nas sociedades pré-modernas, mas apenas para as mulheres de status
social inferior. O capitalismo contemporâneo transformou isso em uma norma. É a
primeira vez na história que alguém pode usar de forma legítima o seu corpo e
sua beleza para obter valor econômico. As profissões onde isso acontece já não
são menosprezadas, como acontecia em outras épocas, mas celebradas: atores,
modelos e influencers fazem parte da lista dos trabalhos de
maior prestígio da época atual. A única exceção é a prostituição,
que permanece marginal.
P. Com as redes sociais e, em
particular, o Instagram, todo usuário põe sua aparência no mercado?
R. Exato.
E ainda mais: a atratividade sexual se tornou um critério autônomo de avaliação
em relação aos demais. No Tinder, o perfil não importa muito: o mais importante é
sempre a foto. A seleção é feita, em primeiro lugar, seguindo critérios
visuais. O Tinder e o Instagram se tornaram a nova lei do mercado.
P. Esse fenômeno corresponde à
importância adquirida pela sexualidade nas sociedades ocidentais nas últimas
décadas?
R. Sim,
é o resultado de uma pornificação da cultura, e que fique claro que não estou
fazendo uma crítica religiosa ou puritana à liberdade sexual. A partir dos anos
70, o capitalismo entendeu que o mercado de bens materiais é limitado por
definição ―não se pode comprar cinco geladeiras ao mesmo tempo―, e que a única
coisa que possibilita o consumo infinito é o corpo e as emoções. Essa crescente
sexualização se produz em um contexto em que o indivíduo se torna uma mercadoria. Hoje nos consumimos uns aos
outros e mostramos o espetáculo de nossos próprios corpos aos outros.
P. Você diz que, diante dessa
transformação, o grupo mais vulnerável é a classe média.
R. É
a classe média que está mais sujeita ao risco de
desclassificação. A cada momento histórico, o capital se acumula de maneiras
diferentes e favorece um ou outro grupo social, estabelecendo novas
hierarquias. Hoje vemos emergir uma nova classificação social que separa quem
consegue tirar proveito de seu corpo e quem não consegue. Estes últimos são
vítimas de exclusão, como Michel Houellebecq tão bem descreve em seus livros. O
sexo cria novas desigualdades sociais. E também novas reações a essas
desigualdades, como demonstra o caso dos incels [celibatários involuntários], esses
homens incapazes de fazer sexo que expressam sua frustração por meio da
violência misógina. Essa desclassificação sexual tem importantes efeitos
sociológicos. Parte do eleitorado de Donald Trump integrava esse grupo: eram
homens que haviam perdido o poder econômico e o poder dentro da família, mas
também o poder sexual.
P. Em O Fim do Amor você
fala de uma cultura sentimental que está desaparecendo. Para qual modelo
estamos nos dirigindo?
R. A
cultura moderna secularizou o amor a
Deus e o transformou em amor por outro ser humano. Ou seja, o amor romântico
nada mais é do que uma transformação secular do amor cristão. A época atual
rompe com esse romantismo.
Vivemos
em um mundo colonizado pela hipersexualização de corpos e psiques e dominado
por uma incerteza que é nova.
As interações sexuais de nosso tempo
estão marcadas por este sentimento incerto: ao contrário do que acontecia até
pouco tempo atrás, hoje não se sabe mais quais são as regras que regulam essas
relações, nem qual é o seu objetivo preciso. A liberdade se tornou o único
fator regulador. O que estou tentando mostrar é que nessa liberdade também
existe uma grande desigualdade de gênero. No campo sexual e afetivo, as
mulheres continuam tendo muito menos poder do que os homens.
P. Em
um artigo recente no Le Monde você comparava o
feminismo com o cristianismo. Você o vê como uma religião?
R. O
que eu dizia é que ambos aspiram igualmente a uma mudança radical de
comportamento. O cristianismo transformou a natureza do desejo, redefiniu
a ideia de pertencer a um clã e prefigurou a individualidade. A batalha
cultural do feminismo é igualmente poderosa. A diferença é que, ao contrário do
cristianismo, não conta com Estados nem exércitos para defendê-lo. Ao
contrário: não só ninguém o defende, mas é atacado incessantemente. Embora essa
seja, afinal, a maneira usual que o patriarcado tem para se proteger: por meio
da difamação. É preciso distinguir as críticas justificadas ao feminismo ―que,
como qualquer movimento, por mais justo que seja, pode ter algum desvio de
rota― dos ataques que emanam de velhas ideologias que uma parte da população
não quer superar.
P. Por último, que consequências
todos esses meses de distanciamento compulsório terão em nosso comportamento
afetivo?
R. Vai
depender da vacina. Se funcionar e a epidemia desaparecer, nada mudará
fundamentalmente. Mas, se a vacina não surtir o efeito esperado, entraremos em
um mundo diferente, em que as formas de socialização com desconhecidos, que é
um tipo de sociabilidade muito importante, vão mudar ainda mais do que nos
últimos meses. Se for o caso, veremos se estabelecerem grupos cada vez menores
e cada vez mais impermeáveis ao que acontece no mundo exterior. https://brasil.elpais.com/cultura/2021-01-02/eva-illouz-vivemos-em-um-mundo-colonizado-pela-hipersexualizacao-dos-corpos-e-das-psiques.html