“Espero que juízes não
sejam impedidos de fazer seu trabalho no Brasil, como ocorreu na Itália",
diz promotor das Mãos Limpas
Luiza Bandeira da BBC Brasil em Londres, 25/03/16
Não é difícil ver semelhanças entre
Antonio Di Pietro, o promotor mais famoso da operação Mãos Limpas, que inspirou
a brasileira Lava Jato, e o juiz Sergio Moro.
Assim como Moro, Di Pietro foi
considerado herói na Itália nos anos 1990 por conduzir uma investigação que
revelou um esquema de corrupção envolvendo políticos e empresários. Mas sua
atuação também causou polêmica.
"[Fui acusado de] ter
realizado prisões ilegais, de ser um agente secreto sob ordens da CIA, de ter
provocado suicídio de pessoas presas, de ter feito a operação para destruir o
sistema dos partidos, de estar envolvido eu mesmo em atividades ilegais e assim
por diante", diz ele em entrevista à BBC Brasil. As acusações se provaram
infundadas.
Para Di Pietro, que acabou
fundando seu partido e se tornando político, um dos problemas da operação Mãos
Limpas foi exatamente a tentativa de deslegitimar magistrados (na Itália,
promotores entram nesta classificação), que impediu-os de continuar seu
trabalho.
"Espero que a magistratura
não seja impedida de realizar o próprio trabalho no Brasil como aconteceu na
Itália", afirma.
O ex-promotor ressalta que não
conhece bem a legislação brasileira mas diz que, no caso da polêmica divulgação
de grampos telefônicos, Moro tem direito de se defender de possíveis
"acusações injustificadas".
Em resposta às críticas de que a
operação teria provocado a ascensão de Silvio Berlusconi, ele diz que houve um
vazio de poder, mas que isso não foi causado pela Mãos Limpas. "Berlusconi
chegou ao poder por culpa dos políticos corruptos e dos empresários cúmplices,
e não por culpa dos juízes que os processaram".
Leia abaixo os principais trechos
da entrevista, concedida por e-mail.
BBC Brasil: A operação Mãos Limpas diminuiu a corrupção
na Itália?
Antonio
Di Pietro: A operação Mãos Limpas permitiu
que fosse provado um profundo envolvimento das maiores autoridades políticas e
institucionais do país, inclusive das maiores e mais importantes empresas
públicas e privadas, em atividades ilícitas.
Mas a magistratura pode descobrir
apenas uma parte das atividades ilícitas cometidas e pode entregar à Justiça
apenas os casos mais clamorosos. Moral da história: a operação Mãos Limpas
permitiu descobrir a existência de uma grave doença da qual a nossa democracia
e a nossa economia de mercado sofriam e ainda sofrem. Mas esta doença persiste
porque faltou e ainda falta uma forte atividade de prevenção e educação voltada
para a legalidade.
O juiz penal, por definição, pode
intervir só depois que o crime foi cometido (e apenas nos poucos casos que
consegue descobrir), mas para evitar que os crimes sejam reiterados é
necessário uma eficaz vigilância preventiva e uma escolha cuidadosa das pessoas
que ocupam posições de poder. Até hoje a Itália, sinto muito em dizer, não
conseguiu atingir este objetivo.
BBC Brasil: Alguns críticos dizem que ela acabou levando
Silvio Berlusconi ao poder...
Antonio
Di Pietro: A Mãos Limpas foi uma ação com
finalidade exclusivamente judiciária, sem qualquer finalidade política.
Certamente não é culpa nossa se a classe política italiana de então, em sua
quase totalidade de figuras importantes, estava profundamente envolvida em
atividades criminais.
Certamente, o vazio político que
se seguiu à nossa operação favoreceu o ingresso na política de Silvio
Berlusconi (e graças também à enorme disponibilidade econômica e dos meios de
comunicação dos quais ele era e é proprietário). Mas nós magistrados tínhamos o
dever de agir contra qualquer pessoa que tivesse cometido crime e não
poderíamos fingir que estes crimes não tinham sido cometidos só para evitarmos
a queda da classe política que estava no poder.
Eram exatamente os políticos de
então que tinham o dever de respeitar as leis. Portanto, Berlusconi chegou ao
poder por culpa dos políticos corruptos e dos empresários cúmplices e não por
culpa dos juízes que os processaram. Tanto é verdade que depois o mesmo Silvio
Berlusconi foi processado, condenado e expulso do Parlamento.
BBC Brasil: O que o Brasil pode fazer para evitar este
tipo de problema?
Antonio
Di Pietro : Antes de tudo, espero que a
magistratura não seja impedida de realizar o próprio trabalho, como aconteceu
na Itália, onde, a uma certa altura, a operação Mãos Limpas derrapou por graves
motivos. Cito alguns:
1) o Parlamento (exatamente
porque era composto por muitas pessoas de algum modo ligadas ao poderes
corruptos) promulgou novas leis que modificaram e em determinados casos até
cancelaram alguns crimes, como o de concussão;
2) Os magistrados foram
deslegitimados seja em âmbito profissional seja em âmbito pessoal, com a
cumplicidade de alguns meios de comunicação. Eu, em particular, fui alvo de
várias acusações infundadas (entre elas a de ter realizado prisões ilegais, de
ser um agente secreto sob ordens da CIA, de ter provocado suicídio de pessoas
presas, de ter feito a operação para destruir o sistema dos partidos, de estar
envolvido eu mesmo em atividades ilegais e assim por diante). Acusações que, ao
fim, obrigaram-me a pedir demissão como magistrado para poder defender-me com
homem livre, como fiz com sucesso;
3) Mas o que é mais grave de
tudo, diversos magistrados foram até assassinados (como por exemplo Salvatore
Borsellino e Giovanni Falcone, entre outros) justamente porque estavam
descobrindo as relações que tinham sido criadas entre o sistema político e o
sistema mafioso.
BBC Brasil: O ex-presidente Lula foi empossado como
ministro em ato que foi suspenso pela Justiça. Caso ele seja confirmado, ele só
poderá ser julgado pelo STF. O sr. vê isso como uma tentativa de obstrução à
Justiça?
Antonio
Di Pietro : Considero politicamente
incorreto e eticamente deplorável nomear uma pessoa ministro - mesmo que fosse
a personalidade mais importante do país - apenas para impedir as autoridades
judiciárias de prosseguirem em seu percurso.
Somos todos iguais perante a lei.
Espero que as motivações pelas quais o ex-presidente Lula foi nomeado ministro
não sejam estas e que, portanto, quem o nomeou tenha dado e saiba dar
justificativas mais convincentes.
BBC Brasil: Por outro lado, o juiz Sérgio Moro foi
acusado de passar por cima da Constituição e até de "abrir caminho contra
o Estado de Direito" ao adotar medidas controversas como divulgar grampos
de ligações entre Lula e a presidente Dilma. Isso pode prejudicar a
legitimidade das investigações?
Antonio
Di Pietro : Não conheço suficientemente a
lei processual brasileira e, portanto, não posso julgar. Digo, porém, que o
juiz Moro também tem o direito de se defender de acusações injustificadas que
lhe foram atribuídas.
Obviamente o único modo possível
que encontrou - corretamente ou não, isto caberá ao juiz que por sua vez deverá
julgar o comportamento do dr. Moro -, foi justamente o de tornar público os
atos processuais que demonstrassem que as investigações penais realizadas por
ele sobre importantes personalidades políticas de primeiro escalão no país não
eram infundadas, mas que tinha fortes indícios que tornavam necessária a adoção
das medidas judiciárias que de fato tomou.
Por isso, convido a refletir
sobre a natureza do caso em sua totalidade. Trata-se de uma investigação penal
que envolve personalidades políticas e instituições de primeiro escalão e,
portanto, “em um Estado Democrático de Direito” é interesse primário dos
cidadãos que as pessoas que ocupam cargos públicos deem explicações sobre as
acusações que lhe são dirigidas e não tentem subtrair-se à Justiça usando
diferentes estratégias.
BBC Brasil: Qual conselho o sr. daria para os magistrados
brasileiros?
Antonio
Di Pietro: Os colegas magistrados
brasileiros certamente não precisam dos meus conselhos. Lembro-me da frase que
o Chefe da Procuradoria de Milão, Francesco Saverio Borrelli, nos dizia quando
tentavam impedir o nosso trabalho: “Resistir, resistir, resistir!”. É esta a
mensagem que repasso aos colegas brasileiros.
BBC Brasil: O sr. acabou se tornando político. No Brasil,
muitos veem o juiz Sergio Moro também como um potencial candidato. Possíveis
ambições políticas podem influenciar o trabalho de juízes?
Antonio
Di Pietro: Pessoalmente, não realizei a
operação Mãos Limpas para entrar na política.
Deixei a magistratura em 6 de
dezembro de 1994 e me candidatei pela primeira vez no outono de 1997 (portanto
três anos depois), só depois de ter demonstrado em sede judiciária que as
acusações que tinham sido dirigidas a mim eram todas inexistentes e só depois
de ter obtido inclusive a condenação de quem havia tentado de deslegitimar-me.
Tenho certeza que o colega Sergio
Moro está fazendo o seu trabalho com o único objetivo de cumprir o seu dever de
juiz e, certamente, não sob influência de ambições políticas”.