LULA: O MITO ESTRAÇALHADO,
por Francisco Weffort, um dos fundadores do PT
“A trajetória de Lula o levou da posição de
“sindicalista combativo”, por meio da qual se projetou no país, a lobista das
grandes empreiteiras. Um fim melancólico para quem, no passado, representou uma
esperança de grande parte do povo brasileiro
Luiz Inácio Lula da Silva vai
chegando ao fim do caminho. Mesmo ele é capaz de perceber que está acabando o
terreno à sua frente. Antes do petista, tivemos casos semelhantes desses
meteoros da política que vêm não se sabe de onde, passam por grandes êxitos, alcançam
rapidamente o topo e depois caem miseravelmente. Já nos esquecemos de Jânio
Quadros? Lula é diferente de Jânio em um ponto: veio de mais baixo na escala
social e conseguiu uma influência mais organizada e duradoura na política do
país.
Dilma Rousseff, embora pareça um meteoro,
não é propriamente um caso político. O fato de ela ter chegado à Presidência da
República foi apenas um enorme erro de Lula cometido em um dos seus acessos de
personalismo. Erro, aliás, que o empurra com mais rapidez para o fim. "O cara", de que falou Barack Obama quando Lula tinha 85% de
aprovação, não é mais aquele...
Há algum tempo, muitos gostavam
de ver em Lula um "filho do Brasil". Era o seu primeiro mandato,
quando se pensava que surgia no país uma "nova classe média". Com a
crise dos dias atuais, essa "nova classe" provavelmente desapareceu.
Outra das veleidades grandiosas do petista, já no fim do seu governo, foi um
suposto plano para terminar com a fome no mundo. Também naqueles tempos, alguns
imaginavam que o Brasil avançava para uma posição internacional de grande
prestígio.
Muitos desses sonhos deram em
nada, mas, para o bem e para o mal, Lula foi um filho do Brasil. Aliás, também
o foram os milhares, milhões de jovens fruto do "milagre econômico"
dos anos Médici, assim como, antes deles, os filhos da democracia e do
crescimento dos anos JK, ou, se quiserem, algumas décadas mais atrás, da
expansão aluvional das cidades que assinala o nosso desenvolvimento social
desde os anos 1930. No Brasil, temos a obsessão permanente do progresso, assim
como uma certa vacilação, também permanente em nosso imaginário, entre a
ditadura e a democracia. Lula foi uma variante desse estilo brasileiro de vida.
Queria resolver as coisas, sempre que possível, com "jeitinho", ao
mesmo tempo que sonhava com as benesses do "Primeiro Mundo" e da
modernidade.
Na política brasileira, porque
vinha de baixo, o petista tinha traços peculiares que se revelam em sua busca
de reconhecimento como indivíduo. Nesse aspecto está o seu compromisso com a
democracia, aliás muito aplaudido no início de sua vida como político. O
sindicato foi seu primeiro degrau e, mais adiante, uma das raízes de seus
problemas. É que, a partir desse ponto, Lula passou a buscar seu lugar como
cidadão numa instituição aninhada nos amplos regaços do Estado. Ele começou em
uma estrutura às vezes repressiva e muitas vezes permissiva, que dependia,
sobretudo, como continua dependendo, dos recursos criados pelo Estado por meio
do "imposto sindical". A permissividade maior vinha do fato de que
tais recursos não passavam, e ainda não passam, pelo controle dos tribunais de
contas.
O maior talento pessoal de Lula
foi sair do anonimato, diferenciando-se dos parceiros de sua geração. No
sindicalismo, falou sempre contra o "imposto". E talvez por isso
mesmo tenha logrado tanto prestígio como sindicalista combativo e independente
que não precisou fazer nada de concreto a respeito. Na época das lutas pelas
eleições diretas e pelo fim do autoritarismo reinante sob o Ato Institucional
nº 5, dizia que "o AI-5 dos trabalhadores é a Consolidação das Leis do
Trabalho - CLT". Mas em seu governo não só manteve o imposto e as leis
sindicais corporativistas como foi além, generalizando para a CUT e demais
centrais sindicais os benefícios do imposto.
O que tem sido chamado, em certos
meios, de "carisma" de Lula foi sua habilidade de sentir o seu
público. Chamar essa "empatia", uma qualidade que qualquer político
tem, em grau maior ou menor - e que, aliás, sempre faltou a Dilma -, de
"carisma" é uma impropriedade terminológica. Em sociologia, o
fenômeno do "carisma" pertence ao universo das grandes religiões,
raríssimo no mundo político, e, quando ocorre, é sempre muito desastroso. Os
fascistas de Mussolini diziam que "il Duce non può errare" ("o
Duce não pode errar"), para exaltar uma suposta sabedoria intrínseca ao
ditador. Não era muito diferente das fórmulas típicas do "culto da
personalidade" de raiz stalinista. Embora tais fórmulas estejam superadas
na esquerda há tempos, os mais ingênuos entre os militantes do PT ainda se
deixam levar por coisas parecidas. Consta que, no mundo de desilusões e
confusões do "mensalão", um intelectual petista teria dito:
"Quando Lula fala, tudo se esclarece". Não ajudou muito...
Luiz Inácio Lula da Silva foi uma
das expressões da complexa integração das massas populares à democracia moderna
no Brasil. É da natureza da democracia moderna que incorpore, integre a classe
trabalhadora. No Brasil, como em muitos países, isso sempre se fez por meio de
caminhos acidentados, entre os quais o corporativismo criado em 1943, no fim da
ditadura getuliana, e mantido pela democracia de 1946, como por todos os
interregnos democráticos que tivemos desde então. O corporativismo se estende
também às camadas empresariais, assim como a diversos órgãos de atividade
administrativa do Estado brasileiro. Favoreceu a promiscuidade entre interesses
privados e interesses públicos e certa medida de corrupção que, de origem muito
antiga, mudou de escala nos tempos mais recentes com o crescimento industrial e
a internacionalização da economia brasileira. Nessa mudança dos tempos, Lula
passou de "sindicalista combativo" a lobista das grandes
empreiteiras. Um fim melancólico para quem foi no passado uma esperança de
grande parte do povo brasileiro.
* Francisco Weffort, Professor emérito do Departamento de Ciência
Política da Universidade de São Paulo e ex-ministro da Cultura (de 1995 a 2002,
no governo Fernando Henrique Cardoso). Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores
(PT)
http://veja.abril.com.br,
21/04/16