Dilma construiu uma tragédia com o apoio da
sociedade, diz Delfim
ÉRICA
FRAGA, Folha de São Paulo, 27/03/2016
“A presidente Dilma construiu uma
tragédia com o apoio da sociedade brasileira e agora corre risco significativo
de perder
o mandato.
A análise é do economista Antonio
Delfim Netto, que diz ter sido "grande amigo" do governo Lula e, até
o fim de 2012, da gestão de Dilma.
Segundo Delfim, a popularidade da
presidente disparou quando o governo forçou uma redução dos preços da energia
elétrica em 2012.
A medida teve forte impacto
negativo no setor e as tarifas precisaram ser posteriormente corrigidas.
"Ela atingiu o máximo de sua aprovação quando estava no máximo do erro.
Visivelmente, você estava construindo uma tragédia com o apoio da
sociedade."
Para ele, outros equívocos
grandes do governo Dilma incluíram tentar reduzir os juros sem ter um
equilíbrio das contas públicas condizente e segurar o preço da gasolina,
prejudicando a Petrobras.
Segundo Delfim, os protestos de
junho de 2013 marcaram o momento em que a sociedade acordou em relação aos
erros do governo.
"Ela [Dilma] deveria ter
acordado antes da sociedade. O papel do líder é explicar para a sociedade por
que existem restrições físicas; se você violá-las hoje, elas aparecem amanhã
com uma vingança."
Embora afirme continuar contra o
impeachment, Delfim acha que o risco de afastamento da presidente aumentou
muito.
Folha - O
governo Dilma acabou?
Delfim
Netto - É difícil dizer que acabou,
porque isso depende do resultado do impeachment. Acredito que a situação tem
piorado muito. Em condições normais de pressão e temperatura, a nomeação do
Lula teria ajudado muito o governo. Ele é habilidoso, é negociador, tem controle
sobre o PT -o principal adversário da Dilma desde a nomeação do Levy [Joaquim
Levy, ministro da Fazenda em 2015] foi o PT.
O programa do PT é contrário ao
programa do Levy, do Nelson [Barbosa, atual ministro da Fazenda] e, na minha
opinião, é absolutamente impróprio para o momento que estamos vivendo. Essa foi
uma das maiores dificuldades dela, que também teve uma enorme inabilidade no
tratamento com o PMDB. Ela conseguiu afastar o PMDB, tentou dividi-lo. Ou seja,
o governo nunca entendeu que só uma ação muito forte no Congresso conseguiria
mudar o sistema e as perspectivas de futuro.
Não adianta insistir. A sociedade
hoje não crê que o governo tenha condições de administrar o país. Estamos numa
situação delicada.
O melhor
para o país agora seria uma saída da presidente?
Ela precisaria reassumir seu
protagonismo e aprovar no Congresso medidas estruturais que mudem o futuro do
Brasil. A situação não é só grave no presente, o problema é que não há
esperança para o futuro. Esse é o plano do Nelson [Barbosa], inclusive: cuidar
do longo prazo para dar esperança aos investidores de que haverá volta do
crescimento, e cuidar do curto prazo para não deteriorar muito mais a situação
fiscal.
É preciso que as pessoas se
convençam de que a reconquista da estabilidade está a vista. Você precisa dar à
sociedade uma esperança de que o crescimento vai voltar.
Crescimento é um estado de
espírito, só cresce quem acha que vai crescer, e isso se perdeu. Um dos
problemas é que, no segundo mandato, a presidente não reconheceu que tinha
errado e que a escolha do Levy era uma mudança completa de orientação.
Quando o
senhor percebeu que o país caminhava para uma crise grave?
Em 2011, a Dilma fez um governo
absolutamente perfeito, corrigiu alguns dos exageros do governo Lula, cresceu
3,9%, manteve a inflação em 6,2%, teve superavit primário de 3% do PIB.
Em 2012 quando o governo imaginou
que haveria redução de crescimento, fez uma intervenção na energia, que foi um
desastre. Aqui é importante notar que, quando o Executivo é controlado pela
pesquisa de opinião, pode ser levado a tragédia.
Como
assim?
Quando ela começou a intervenção
na energia elétrica, teve um aumento de quase 6 pontos percentuais de
aprovação. Era uma tragédia. Mas para quem? Para aqueles que enxergavam 12
meses na frente. Para quem ia pagar a conta do mês seguinte era uma medida
maravilhosa. A resposta da sociedade foi extremamente positiva, ela apoiou a
Dilma nos seus equívocos.
Como se não bastasse, quando
houve a segunda intervenção danosa, que foi reduzir a taxa de juros sem
produzir as condições fiscais para isso, ela teve mais um surto de aprovação.
Ela atingiu o máximo de sua aprovação quando estava no máximo do erro.
A pesquisa de opinião é distante,
não reflete se uma medida é certa ou errada, responde aos interesses daquele
instante. Visivelmente, você estava construindo uma tragédia com o apoio da
sociedade.
Como um
governante eleito deveria lidar com isso?
Ele tem que ter um programa,
saber o que está fazendo. Tem que conhecer as consequências.
O senhor
disse no passado que achava a presidente uma mulher muito inteligente. O que
deu errado?
Continuo achando ela inteligente,
não mudou nada.
Faltou
habilidade política?
Acho que faltou habilidade
política. Ela é pessoalmente correta, tem honestidade de propósito e tem um
objetivo que é a modicidade tarifária. Todos esses erros foram produzidos pela
modicidade tarifária.
A
modicidade tarifária é um erro?
É uma boa ideia que, mal usada,
pode produzir grandes erros: por exemplo, quando fixo a taxa de retorno no
leilão, quando, para controlar a inflação, controlo o câmbio, quando, para
controlar a inflação, controlo o preço da gasolina, empurro um buraco gigantesco
na Petrobras e destruo o setor de etanol.
Esses
erros pesaram contra o governo?
Isso tudo foi acumulando e, a
partir de junho de 2013, começou um desarranjo político muito sério. Depois
daquelas passeatas, o governo nunca mais juntou pé com cabeça.
As
passeatas foram um divisor de águas?
Eu diria que a passeata foi um
instante em que a sociedade que tinha errado todo o tempo respondendo às
pesquisas acordou. E ela deveria ter acordado antes da sociedade.
Algumas
medidas que os economistas listam como necessárias para retomar o crescimento
são impopulares. A sociedade está preparada?
Algumas questões são restrições
físicas. Por exemplo: nada mais justo que um bom sistema previdenciário, nada
mais insustentável do que um mau sistema previdenciário. Um bom sistema
previdenciário precisa ser atuarialmente sustentável. Isso não tem nada que ver
com a pobreza.
O que é preciso? O papel do
governo, do líder, é explicar para a sociedade por que existem restrições
físicas e que, se você violá-las hoje, ela aparece amanhã com uma vingança.
É isso que se exige da liderança, e não obedecer à opinião pública.
É isso que se exige da liderança, e não obedecer à opinião pública.
É se antecipar, educar para as
restrições físicas que são inevitáveis. Quando você tenta violar as condições
da contabilidade nacional você está construindo a tragédia. Quando você tenta
distribuir mais do que produziu, sem ter ganhado algo de presente ou tomado
emprestado, você está construindo a tragédia.
O problema é que a construção da
tragédia, no curto prazo, produz um enorme entusiasmo nas pessoas que não têm
condição de ver um horizonte mais longo. Mas isso é uma coisa que vai chegar
com educação.
Os erros
foram do PT?
Não. O Lula aproveitou uma
situação mundial favorável e fez um bom governo, a destruição das finanças
foram em 2014, produzidas pela redução do crescimento. A partir de 2012, você
começou a entrar em um desvio perigoso e está colhendo os frutos.
Os erros
foram da presidente e de seu governo?
Acho que a presidente sempre foi
a chefe da Casa Civil, a ministra da Justiça, da Fazenda, do Planejamento, dos
Transportes, do Bem-estar Social. Para o governo Dilma funcionar, o dia teria
que ter 240 horas. Ela é compulsivamente detalhista e tem pouca confiança em
seus auxiliares.
Isso é
incompatível com o bom exercício da Presidência?
Torna tudo muito mais difícil,
porque você está num sistema presidencialista de coalizão. O presidente tem que
'presidencializar' e 'coalizar'.
O senhor tem falado muito sobre o
presidencialismo de coalizão.
Visivelmente não funciona. Basta
ver a história recente. Temos que caminhar para algo diferente, provavelmente
para algum mecanismo de parlamentarismo. Mas isso exige uma mudança profunda do
regime eleitoral.
Você precisa, na verdade, ter um
sistema eleitoral em que haja regras de barreira, que não permita alianças de
partidos no nível inferior, que seja distrital, porque o distrito é a forma
mais interessante de melhorar a qualidade do político. O distrito exerce sobre
o político um controle que as pessoas não percebem.
Por que é
tão difícil adotar as reformas necessárias para o Brasil crescer de forma
sustentada?
Esse é um processo evolutivo.
Cada eleição, à medida que é mais livre, vai empoderando o cidadão, mas o que
empodera de verdade, é o grau de conhecimento, de educação, sua capacidade de
enxergar um pouquinho mais longe.
As ações não nasceram perfeitas,
é um processo quase biológico, uma seleção natural. O homem na história foi
procurando alguma forma de administração que satisfizesse a três condições: a
liberdade de iniciativa, relativa igualdade de oportunidade e eficiência
produtiva.
O homem não nasceu para
trabalhar, o homem nasceu para realizar sua humanidade. Então por que precisa
de eficiência produtiva, que é do que os economistas cuidam? É para ter mais
tempo para construir sua humanidade.
O senhor
vê sinais de que a sociedade e a classe política brasileira estão chegando a
esse ponto de enxergar as mudanças necessárias?
Sim, é visível. Vai avançando
lentamente, mas avança. Mesmo o sistema distrital, está se construindo
naturalmente.
Que
sinais o senhor vê disso?
Hoje grandes cidades do interior,
já elegem seu próprio representante. É muito difícil o sujeito de Araraquara,
buscar voto em Ribeirão Preto. Ou seja, as coisas começam a caminhar. O homem
já acreditou no sacerdote, no rei, no presidente e foi avançando. Hoje todo
mundo sabe que a sociedade razoável é aquela onde você progride, mas seu
vizinho cresce junto.
Como as
tensões da sociedade brasileira afetam a chance de a presidente Dilma continuar
no cargo?
A probabilidade diminuiu.
Que
cenário o sr. vê?
Hoje, quem me disser o que vai
acontecer nos próximos 30 dias ou está mentindo ou está mal informado. Foi
iniciado um processo no Congresso que termina com ela ficando ou saindo.
O que vai
determinar o resultado?
O que está acontecendo agora. É
tão volátil o Congresso. A Câmara é de uma volatilidade enorme, ela varia de 50
votos para 350 com uma notícia. Hoje, você não tem controle sobre as notícias.
Mas acho que a probabilidade do impeachment cresceu bastante, muito mais do que
teria crescido se tivesse dado certo a nomeação do Lula.
A
confiança foi abalada com a conversa vazada pela Polícia Federal?
Podem dizer que a Dilma tentou
proteger Lula, mas como vão saber? É uma questão de sentimento interno, você
precisa provar que isso aconteceu. Mas o grampo deu um sentimento de que a
atitude foi para proteger, e as coisas evoluíram muito depressa.
A sociedade inteira está
estupefata diante dessas coisas. E você está judicializando toda a política.
Isso é
ruim?
Há coisas que são fundamentais; o
respeito ao STF (Supremo Tribunal Federal) é a garantia de todas as nossas
liberdades. Um ministro do Supremo não tem passado, só futuro. É o respeito que
ele tem da sociedade que decide seu futuro. Então vejo com preocupação essa
ideia de que "ah, o Congresso não vale nada, o Executivo não vale
nada". Mas quem escolheu o Supremo? O Executivo e o Congresso. Como pode
sair a pureza do que não vale nada? Há uma contradição nessas coisas.
O que
fundamenta essas crenças?
É assim que funciona. As pessoas
têm dificuldade de superar suas próprias crenças e desejos.
Já experimentamos tudo e sabemos que nada funciona fora do regime democrático apoiado numa economia de mercado. Você tem 30 países no mundo razoavelmente civilizados e democráticos, todos usaram o mesmo processo. Quer dizer, não precisa ficar inventando, copia, copia bem feito, mais nada.
Já experimentamos tudo e sabemos que nada funciona fora do regime democrático apoiado numa economia de mercado. Você tem 30 países no mundo razoavelmente civilizados e democráticos, todos usaram o mesmo processo. Quer dizer, não precisa ficar inventando, copia, copia bem feito, mais nada.
Se a
presidente sair, o impeachment é o caminho institucionalmente melhor?
São questões pessoais. Eu sempre fui contra o impeachment, porque ele exige uma violação de função. Então, nunca me convenci de que as puras mutretas que se chamaram de "pedaladas"... Elas vêm desde dom João 6º.
São questões pessoais. Eu sempre fui contra o impeachment, porque ele exige uma violação de função. Então, nunca me convenci de que as puras mutretas que se chamaram de "pedaladas"... Elas vêm desde dom João 6º.
Vai ter que provar no Congresso
se realmente houve a violação de função.
O grampo
traz evidências mais graves do que as pedaladas?
Mas teria que provar. O grampo é
um indício, uma questão, digamos, psicológica. Só o Supremo pode decidir.
Essas
ressalvas tiram legitimidade do processo de impeachment?
Não, ele absolutamente é
legítimo. Está no Congresso, na Constituição. Quando acontece uma violação de
função. Mas tem que provar.
O que o
senhor acha do documento "Ponte pra o Futuro". É correto chamá-lo de
"plano Temer" [Michel Temer, vice-presidente]?
É correto porque foi ele que
propôs. Aquilo não tem autor, é uma emanação de um razoável consenso que domina
as pessoas razoavelmente conscientes da sociedade. As pessoas sabem que é
preciso ter um mínimo de consenso pra administrar. É um bom programa.
Se
adotado ajudaria a recuperar o crescimento?
Eu não tenho dúvida. Qualquer
governo que tivesse aquele programa e poder para implementá-lo melhoraria
dramaticamente o Brasil.
Muitos
políticos podem ser implicados pelas investigações da Lava Jato. Isso não é um
risco para um eventual governo de transição?
São duas coisas completamente
diferentes. A Lava Jato é um ponto de inflexão na história do Brasil. Tem
inconvenientes instantâneos, mas vai mudar o comportamento da sociedade
brasileira. Vai gerar mudanças estruturais que, no futuro, irão acelerar o
crescimento do país.
O sr. é
bastante próximo de Michel Temer. No passado, foi citado também como
conselheiro do ex-presidente Lula e da presidente Dilma. Quando o sr. se
afastou do governo atual?
Você acredita na imprensa?
[risos]. Na verdade eu nunca fui conselheiro, mas fui grande amigo do governo
Lula e do governo Dilma até o fim de 2012. Acho que o Lula fez um bom governo.
Acho que a Dilma fez um excelente 2011 e começou a se desviar em 2012.
Desde dezembro de 2012, quando
foi feita aquela operação sinistra em que se transformou dívida pública em
superavit primário, via BNDES, eu tomei distância. Mas não tenho esse espírito
crítico exagerado que as pessoas pensam. Governar é muito difícil”.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ 27/03/16