Valerio Arcary, professor do IF/SP (Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia) e doutor em História pela USP, faz uma
análise profunda interessane sobre os 10 anos do PT no governo. Vejam : « Carismático, Lula uniu um dom excepcional de oratória ao gênio
político. Líder intuitivo, demonstrou surpreendente capacidade de
improvisação em situações adversas. É verdade que Lula conquistou a sua
liderança assumindo o papel de principal porta-voz das reivindicações
populares nos anos 1980/90. Sua ascendência foi uma das refrações da
acelerada urbanização e industrialização. Foi, também, expressão de
proletariado jovem, concentrado, sem experiência política, recém-deslocado
dos confins miseráveis das regiões mais pobres e semi-letrado (1).
Não obstante, seria superficial concluir que o lugar
que Lula ocupou nos últimos trinta anos foi resultado somente de seus
talentos ou da sorte. A posição privilegiada de porta-voz das aspirações
populares foi produto, também, do reforço de sua figura pela própria
burguesia, quando ficou claro, durante a Constituinte de 1986/88, que não era
uma ameaça ao regime democrático em formação. Foi favorecido pela mídia
burguesa em alternativa a Prestes e Brizola, por um lado e, também, talvez
sobretudo, pelo perigo da influência das tendências revolucionárias internas
do PT, muito ativas nos anos 80.
A classe dominante brasileira contribuiu para o reforço
de sua autoridade oferecendo-lhe uma visibilidade política crescente diante
de seus potenciais rivais. A burguesia brasileira confirmou a sua habilidade
política assimilando Lula e o PT como a oposição eleitoral que o regime
democrático necessitava como válvula de escape.
Lula
foi, portanto, conscientemente poupado, sobretudo depois de chegar ao poder,
de ataques diretos mais contundentes, o que reforçou sua imagem. O seu
amadurecimento foi elogiado pelas lideranças burguesas mais lúcidas que
confessaram respeito, e até gratidão, pela função que cumpriu como garantia
da segurança do regime democrático. Já tinha demonstrado nas prefeituras,
governos estaduais e no Congresso Nacional que era uma oposição ao governo de
plantão, mas não era inimigo do regime democrático-liberal de tipo presidencialista
que vingou depois de 1985.
Não era sequer inimigo irreconciliável do estatuto da reeleição, uma
deformação anti-republicana e, especialmente, reacionária. A burguesia já
admitia, desde 1994 pelo menos, que o PT pudesse ser um partido de alternância
disponível para exercer o governo em um momento de crise econômica e social
mais séria. Lula e Zé Dirceu assumiram, publicamente, mais de uma vez,
compromissos com a governabilidade das instituições, exercendo pressões
controladoras sobre os movimentos sociais sob sua influência. Lula não foi um
improviso como Kirchner. Lula não foi uma surpresa como Evo Morales. Lula não
foi considerado um inimigo como Hugo Chávez.
Se considerarmos a evolução política da América Latina,
na primeira metade da última década, parece incontroverso que os regimes
democráticos viram as suas instituições questionadas pelas mobilizações de
massas, seriamente, pelo menos em alguns dos mais importantes países
vizinhos. Dez presidentes não completaram seus mandatos. Entre 2001 e 2005,
quatro países da América do Sul estiveram em situações revolucionárias. Os
governos cúmplices do ajuste recolonizador na América Latina dos anos 90 se
desgastaram até a queda, ao ponto de vários ex-presidentes – Salinas do
México, Menem da Argentina, Cubas do Paraguai, Fujimori do Peru e Gonzalo de
Losada da Bolívia, além dos golpistas da Venezuela – terem sido presos, se
encontrem foragidos ou à espera de julgamento.
O governo Lula dobrou-se diante do imperialismo e da
burguesia brasileira como produto de uma estratégia política consciente. Lula
foi um interlocutor do governo norte-americano para os governos venezuelano,
boliviano e equatoriano, elogiado pela sua responsabilidade por ninguém menos
do que Bush. Sua influência moderadora sobre Chávez, Evo Morales e Correa foi
reconhecida por Washington, pelos governos europeus e até pelas burguesias
locais. O PT beneficiou-se, em 2002, de um crescente mal estar social que
vinha se acumulando desde o início do segundo mandato de Fernando Henrique
Cardoso.
O governo Lula é história do tempo presente. É preciso
distinguir, portanto, o que foi o governo Lula das percepções que ele deixou.
O crescimento econômico entre 2004 e 2008, interrompido em 2009, porém,
recuperado com exuberância em 2010, foi inferior à média do crescimento dos
países vizinhos, mas a inflação foi, também, menor. A média do crescimento do
PIB durante os anos do governo Lula foi de 4% ao ano, inferior ao crescimento
da Argentina ou da Venezuela no mesmo período, mas a inflação abaixo dos 5%
ao ano foi, também, menor.
Desde 2011, com Dilma, o Brasil entrou em fase de
estagnação econômica e reprimarização produtiva. As concessões à grande
burguesia aumentaram, não diminuíram, ao contrário do que afirmam os
defensores das teses desenvolvimentistas. Isenções fiscais, novas e
ambiciosas parcerias público-privadas, favorecimento e garantias redobradas
aos investimentos estrangeiros, além de sinalização de novas reformas
trabalhistas e previdenciárias.
O
mais importante, no entanto foi a manutenção do tripé da política econômica
herdada do governo de Fernando Henrique Cardoso e supervisionada pelo FMI: a
garantia do superávit primário acima de 3% do PIB, o câmbio flutuante em
torno dos R$2 por dólar e a meta de controle da inflação abaixo de 6,5% ao
ano. Não deveria surpreender o silêncio da oposição burguesa, e o apoio
público indisfarçável de banqueiros, industriais, latifundiários e dos
investidores estrangeiros.
Eis a chave de explicação do sucesso
popular dos governos do PT: reduziu o desemprego a taxas menores que a metade
daquelas que o país conheceu ao longo dos anos 90; permitiu a recuperação do
salário médio que atingiu em 2011 o valor de 1990; aumentou a mobilidade
social, tanto a distribuição pessoal quanto a distribuição funcional da
renda, ainda que recuperando somente os patamares de 1990, que eram,
escandalosamente, injustos; garantiu uma elevação real do salário mínimo
acima da inflação; e permitiu a ampliação dos benefícios do Bolsa-Família.
Os grandes capitalistas nunca ganharam tanto dinheiro
como nos oito anos de Lula na presidência, uma façanha que ele próprio,
despudoradamente, reivindicou. Basta lembrar que os bancos bateram todos os
recordes de rentabilidade. Ou seja, Lula fez pelo capitalismo brasileiro
aquilo que na Argentina a coligação de radicais e peronistas dissidentes em
torno a De La Rua tentaram fazer e fracassaram, estrondosamente, ao manter a
política econômica de Menem e Caballo, precipitando a insurreição de dezembro
de 2001 que os derrubou. No Brasil, ao contrário, o governo do PT reforçou a
estabilidade institucional do regime político presidencialista.
Desde 2003, Lula fez o ajuste do superávit primário,
levando Meirelles para o Banco Central, fez a reforma da previdência que
Fernando Henrique ambicionava fazer e não conseguiu, e ainda se reelegeu.
Quando da crise mundial de 2008, Lula protegeu o capitalismo dos
capitalistas: o BNDES foi acionado para favorecer a formação de grandes
corporações nacionais, financiando aquisições e fusões.
Foi um governo
quase sem reformas progressivas e muitas reformas reacionárias, porém, com
uma governabilidade maior que seus antecessores. Mas estes dez anos não
passaram em vão. Uma reorganização sindical e política pela esquerda do
governo, e das velhas organizações, como a CUT e o PT, já começou, ainda que
o processo de experiência tenha sido e permaneça, relativamente, lento. A
influência do lulismo não irá diminuir, todavia, sozinha. Será necessária uma
luta política corajosa e lúcida para construir novos instrumentos de representação
e organização do proletariado.
Esse foi o sentido da fundação da CSP/Conlutas e de
outras articulações. Será das lutas dos trabalhadores e da juventude, na
resistência inflexível aos governos liderados pelo PT, que surgirá uma
alternativa. Ela é mais necessária do que nunca. A esquerda revolucionária
marxista deve ser um ponto de apoio firme, porque a ela pertence o futuro.
NOTAS :
1) O censo de 2010 informou que o Brasil tinha 190
milhões de habitantes, dos quais 30 milhões nas áreas rurais, portanto, cerca
de 85% da população urbanizada. O nível de instrução da população aumentou: a
escolaridade média subiu de três anos de escola em 1980 para 7,3 anos em
2010. Ainda assim, diversas pesquisas
sugerem que algo próximo de 50% da população com 15 anos ou mais não atribui
sentido ao texto escrito. O percentual de pessoas com pelo menos o curso
superior completo aumentou somente de 4,4% para 7,9%. A dinâmica interna da
migração do campo para a cidade foi especialmente intensa entre 1950/80. A
população economicamente ativa foi estimada em 95 milhões e a classe operária
representa algo em torno de 15 milhões. A taxa de fecundidade no Brasil caiu,
aceleradamente, de 2,38 filhos por mulher em 2000 para 1,90 em 2010, mas era
de mais de 6 filhos por mulher em 1950.
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